domingo, dezembro 31, 2006

Citação (importante)




"Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na Deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o Amor tem asas de ouro. Amen."


Natália Correia
"Poesia Completa", Publicações Dom Quixote, 1999.

sábado, dezembro 30, 2006

Bom ano!

Se danço avanço e lanço o verbo alcanço.
Não fosse o ruído dos ossos
E isto era um balanço.

quinta-feira, dezembro 28, 2006

Aos Amigos

Por esta altura o velho de Natal já esteve nas vossas casas; prometendo voltar para o ano; escorregando pela chaminé abaixo ou, então, como me explicou a Rita, que tem 4 anos e mora num apartamento, furando o tecto com os seus sapatos especiais. Concordei. Afinal, que seria do Natal se não fosse a nossa imaginação? Felizmente que nem a Rita nem nenhuma das crianças que conheço dá muita importância à mãe Natal, essa figura que, agora não sei porquê (?), resolveu começar a aparecer. No meu tempo, a mãe Natal não acompanhava o velho de Natal na distribuição das ofertas. Só as renas. Nem se passeava com ele pelas ruas. Penso que essa novidade não veio acrescentar nada de interessante. A ver vamos.
Despeço-me aqui de 2006. Despedir um ano é das despedidas mais alegres. Creio. De uma forma ou de outra, mesmo que não os rebentemos, foguetes cairão sobre as nossas cabeças, fazendo com que, mesmo interiormente e inconscientemente, façamos planos para 2007. É humano.
Nunca gostei de despedidas. Mas, desta gosto. Despedir um ano não é a mesma coisa que despedir de um lugar ou de um amigo. Por isso também, quero dedicar esta nota de abertura aos meus amigos que “ficaram” em 2006. De alguns, consegui despedir-me. De outros, não tive ocasião. Mesmo assim são para eles estas linhas. Sendo certo que, como a Rita, eu ainda sou capaz de acreditar que, se puderem, eles hão-de furar o tecto da minha casa para me visitar. Daqui a três dias chega 2007. Para o novo ano, uns mais que outros, preparam artilharias de boa disposição, pastilhas de saúde ou bolachas de investimentos.
Sejam quais forem os planos dos leitores/colaboradores deste Suplemento, aos quais agradeço toda a colaboração e apoio, desejo um bom ano 2007. Portem-se bem. Ás vezes resulta…


Nota de Abertura publicada hoje, dia 28-12-2006 na edição do Suplemento de Cultura do jornal Açoriano Oriental
Colaboram nesta edição: Mónica Goulart, Susana Rosa, Mário Homem, António Melo Sousa e Nuno Barata. Fotografias: Paula Leal e Augusto Macedo.

Reparo de fim d´ano




Se no Teatro Micaelense se vendesse Hamburguers, o que é que acontecia ás obras circundantes?!

segunda-feira, dezembro 25, 2006

Último Poema

"É Natal, nunca estive tão só.
Nem sequer neva como nos versos
do Pessoa ou nos bosques
da Nova Inglaterra.
Deixo os olhos correr
entre o fulgor dos cravos
e os dióspiros ardendo na sombra.
Quem assim tem o verão
dentro de casa
não devia queixar-se de estar só,
não devia."

Eugénio de Andrade, Rente ao Dizer (1992)

sexta-feira, dezembro 22, 2006

CARTA

“ (…) não devemos malquerer às mitologias assim,
porque são das pessoas
e, neste assunto de pessoas,
amá-las é que é bom(…)”
(
Herberto Hélder, in Revista Via Latina, 1991)

Querido.
Começo por te chamar querido, porque o és e, também, porque acredito que, sempre que quisermos chamar isso aos outros devemos fazê-lo, sob pena de perdermos a vez. A seguir, quero saber se estás bom e se passaste bem o ano, que está quase a acabar?
Pode que me respondas. Pode que me escrevas outra carta. Portei-me bem este ano. (Ponto).
Eu gosto tanto de receber uma carta, de abrir o envelope e ver as palavras todas arrumadas nas linhas. Gosto de desfiá-las uma a uma, como contas de um rosário ou, então ervilhas ou, ainda, pequenas pérolas de um colar rebentado há muitos anos na garagem da avó. Guardado como um segredo. (As pérolas caindo no chão como lágrimas. Fazendo aquele som, que só as onomatopeias sabem pronunciar).
Agora, sim, depois de tudo isto; de te perguntar pelo ano passado e o novo, de te dizer que me portei bem e de divagar um bocadinho como quem saltita num rolo de fita e agarra a rima num golpe de esgrima; passava a dizer-te como foi bom receber resposta às cartas que te escrevi ano após ano. Cartas para todos os gostos. Cartas sem linhas. Linhas com cartas. Cartas com quadrados; cartas enquadradas; cartas cortadas; incompletas; repetitivas. Os rebuçados que te mandei nas cartas. As gamas e as cores dos tecidos das saias e das blusas para as minhas bonecas; a lista infindável de nomes de livros e discos. Muitas cartas. A todas elas tive resposta em 1994. Tinha 18 anos. E, por falar em idades e datas, lembrei-me dos anos da Rosa.
Não sei se algum dia a Rosa te escreveu uma carta. Mas, conhece-la de certeza. A Rosa fez 100 anos o mês passado e apareceu muito bonita a falar na Televisão, com o seu sorriso grande e brilhante; onde sempre soube, que se lhe pedisse, cabia lá por inteiro. Talvez tenha sido a primeira vez, que a Rosa falou de si. Ela, que como explicou à senhora jornalista que a entrevistou: “nunca fez mal a ninguém”. E depois, não sei se viste (?), “bailhou” a Chamarrita. Tenho saudades do tempo de vigia da Rosa; da época, em que ela te substituía na tarefa de ver se nos portávamos bem. Eu, os meus irmãos e primos. (Minha querida Rosa. Digo). E lembro-me dela na Televisão e imagino-a nas ruas para cima e para baixo. Os seus óculos de massa, o lenço sempre na cabeça, o casaco de malha, a sua passada curta e um amor, um amor muito grande para dar sem “fazer mal a ninguém”.
Não quero parecer-te muito desorganizada por andar sempre atrás e adiante, mas ainda antes de recuar a 1994, quando me mandaste a carta escrita, a resposta a todas as outras cartas de há anos, naquele dia chuvoso e triste, deixa-me falar-te da primeira boneca que eu tive: a “Joana”. Não sei se te lembras? Deste-ma em 1979 e ela caiu de cima do sofá de casa do avô para o chão e ficou logo sem tomar leite. Tive que ta devolver. Voltou, meses depois, como nova. Fui buscá-la a casa dos avós, numa caixa, que imitava uma caminha e tinha um laço vermelho. Era linda. Ainda a tenho. Pode ser que o bebé que chega para o ano queira brincar com ela. Não sei. Se não quiser, pode brincar com o mini vermelho, que me deste, quase igual ao do pai, que era branco, ou então, com a bola de lã vermelha, que me ofereceste, quando nasceu o meu irmão. (Uma bola à Benfica). (Como vês, 2006 tem sido um ano de emoções). Voltando, a 1994 e à resposta da tua carta escrita em papel reciclado, uma folha. Foi um consolo. Abri-la e ler-te. Saber que não te vendo, estavas lá tu a ver-me. Saber que me ouvias, que me vias, que me lias; saber o que procurava há tantos anos. E, agora, deves estar a perguntar a ti próprio o que me leva, passados 12 anos, a escrever-te esta carta?
Tenho que me voltar a lembrar como é que se voa a fingir? Onde moram as fadas que curam as doenças? De que cor são os casacos dos duendes? Quem é a Carochinha? Como é que eu chego à lua?
E sei, que a estas perguntas, só tu me podes responder.
De modo que, a carta que me escreveste em 1994 e que era uma resposta a todas as que te enviei, desde 1978; primeiro com a letra da mãe e depois com a minha, vinha escrita pela tua mão e era curta e enorme ao mesmo tempo. Chegou num dia triste de Inverno. Ainda não era Natal. “Querida. Existe e Insiste. Um beijo do velho de Natal.” (Janeiro, 1994). A carta era esta.
Por isso, estou, com a devida distância - como o poeta -: “Com medo de o perder nomeio o mundo (…)” (Vitorino Nemésio) e é esta a razão para te escrever. (Simples, parece-me). Preciso de saber tudo o que já te disse e mais coisas. Onde se encontram as poções mágicas do Asterix e os espinafres do Popeye? As estrelas dormem?
Preciso de saber (também isto) para continuar a existir e a insistir. Por isso, aqui estou e aqui deixo escrito: com medo de te perder, nomeio-te: Querido Velho de Natal. (E chamo-te “querido” para não perder a vez )…

Texto publicado no dia 22 de Dezembro de 2006, jornal Açoriano Oriental, Suplemento de Natal

Boas Festas! (3)

Ó Gente da Minha ...



Mariza

Boas Festas! (2)

Tabacaria.mp3


"Tabacaria", Álvaro de Campos, dito por João Villaret

quinta-feira, dezembro 21, 2006

domingo, dezembro 17, 2006

Cerco


Foto:A.Pascoal

O «weekend postcards» do Alexandre retoma uma questão que foi referida no programa Estado da Região e, cuja resposta ficou por se saber...
As obras do parque em frente ao TM são hoje uma espécie de "cerco" ao espaço e, por via disso, dificultam em demasia quem quer assistir a um espectáculo naquele imóvel.
Será que se irá passar o mesmo nas Portas do Mar?
E se as obras fossem do Governo e estivessem a decorrer na Rua de Lisboa e na Avenida Roberto Ivens?

Para ouvir


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"Queria de ti um país de bondade e de bruma
Queria de ti o mar de uma rosa de espuma."


Mário Cesariny
Sinais (TSF)

sábado, dezembro 16, 2006

Trapézio



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«Contamos segundos
Instantes escassos
Caímos mil vezes
Seguidas de abraços ;
A dança é divina
Ela vive no ar
Ela voa sem asas
Não quer aterrar

É bom arriscar o salto,
Planar,
Sentir de novo emoção...
É tão bom
Saber que a morte
É falhar
Voar de encontro à tua mão

Aqui, no trapézio,
A rede é distante
O meu horizonte
É um braço errante ;
Despimos as horas
Perdidos no espaço,
Entre o rugir de um leão
E o choro de um palhaço

É bom arriscar o salto,
Planar,
Sentir de novo emoção...
É tão bom
Saber que a morte
É falhar
Voar de encontro à tua mão»


Jorge Palma
A ouvir aqui

sexta-feira, dezembro 15, 2006

quinta-feira, dezembro 14, 2006

ES VERDAD

"Ay qué trabajo me cuesta
quererte como te quiero!

Por tu amor me duele el aire,
el corazón
y el sombrero.

Quién me compraría a mí,
este cintillo que tengo
y esta tristeza de hilo
blanco, para hacer pañuelos?

Ay qué trabajo me cuesta
quererte como te quiero!"


Frederico García Lorca

segunda-feira, dezembro 11, 2006

www.tvnet.pt



Está de volta a primeira Televisão Nacional na Internet

domingo, dezembro 10, 2006

sexta-feira, dezembro 08, 2006

Bom Fim-de-Semana!

"We are the champions - my friends
And we'll keep on fighting - till the end
We are the champions -
We are the champions
No time for losers
'Cause we are the champions - of the world"


Original: Queen
Versão que estava aqui antes; encontra-se aqui agora

quinta-feira, dezembro 07, 2006

Citação (porque sim)


Foto: Cláudia M.
«Somos nós
As humanas cigarras!
Nós,
Desde os tempos de Esopo conhecidos.
Nós,
Preguiçosos insectos perseguidos.
Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos
A passar!...

Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras,
Asas que em certas horas
Palpitam,
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura!
E que da planura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.

Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz!
Vinho que não é meu,
mas sim do mosto que a beleza traz!

E vos digo e conjuro que canteis!
Que sejais menestreis
De uma gesta de amor universal!
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural!
Homens de toda a terra sem fronteiras!
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele!
Crias de Adão e Eva verdadeiras!
Homens da torre de Babel!

Homens do dia a dia
Que levantem paredes de ilusão!
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão


Aos Poetas, Miguel Torga

quarta-feira, dezembro 06, 2006

Citação (importante)

«(...) Simon de Beauvoir: E voltando ao Prémio Nobel, a que foi então a mais escandalosa das suas recusas, a que foi mais conhecida, a mais comentada?
J.P.Sartre: (...) O Prémio Nobel consiste em dar um prémio todos os anos. A que corresponde esse prémio? Que significa um escritor que recebeu o prémio em 1974, o que quer isso dizer em relação aos homens que o receberam antes, ou áqueles que não o receberam mas que escrevem como ele e que são, talvez, melhores? Que significa esse prémio? Pode-se dizer verdadeiramente que no ano em que mo deram eu era superior aos meus colegas, os outros escritores, e que no ano seguinte foi outro que o foi? Devemos verdadeiramente considerar a literatura desta maneira? Como pessoas que são um ano superiores, ou então que o são há muito tempo, mas que serão reconhecidas nesse ano como superiores? É absurdo. É mais do que evidente que um escritor não é alguém que, num dado momento, é superior aos outros. Ele é igual aos melhores, quando muito. E «os melhores» continua a ser uma fórmula errada. Ele é igual áqueles que fizeram realmente bons livros, e além disso é-o para sempre. Fez aquela obra, talvez cinco anos antes, talvez dez anos antes. É preciso qualquer coisinha nova para que nos dêem o Prémio Nobel. Eu tinha publicado Les Mots; eles acharam aquilo válido e deram-me o prémio um ano depois. Para eles, aquilo dava um novo valor à minha obra. Mas deveremos concluir daí que, no ano anterior, quando eu não tinha publicado essa obra, valia muito menos? É uma noção absurda; essa ideia de colocar a literatura em hierarquia é uma ideia completamente contrária à ideia literária, e pelo contrário perfeitamente conveniente para uma sociedade burguesa que quer integrar tudo. (...) E foi por isso que eu recusei o Prémio Nobel, porque não queria de maneira nenhuma ser considerado como um igual a Hemingway, por exemplo. Gostava muito de Hemingway, conhecia-o pessoalmente, tinha ido vê-lo a Cuba, mas a ideia de ser comparado com ele, de estar numa categoria qualquer em relação a ele, estava muito longe do meu pensamento.
Há nisto uma ideia que acho ingénua e estúpida. (...)»


Excerto de Conversas com Jean Paul Sartre, incluídas na obra de Simone de Beauvoir "A Cerimónia do Adeus", ( tradução: Helena M. dos Santos), Bertrand, 2ª edição, Lisboa, 1991, pp. 233, 234.

segunda-feira, dezembro 04, 2006

Festa sem pipocas e balões...


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Venda na rua proibida durante o dia das montras

«A Câmara Municipal de Ponta Delgada emitiu um edital a informar que é expressamente proibido a venda ambulante na baixa de Ponta Delgada a 8 deDezembro, durante a festa das montras.
O edital, assinado por Berta Cabral, presidente da autarquia de Ponta Delgada refere que “fica proibido o exercício de qualquer actividade de venda ambulante durante o próximo dia 8 deDezembro, nas ruas António José de Almeida, Hintze Ribeiro, Manuel Inácio Correia, bem como em toda a zona circundante à igreja Matriz de São Sebastião e Praça Gonçalo Velho”, declara o edital.
Desta forma o único local onde poderá haver venda ambulante no dia das montras será nas áreas periféricas à baixa de Ponta Delgada.»

Açoriano Oriental, 4 de Dezembro de 2006, pag.8

Depois da Batalha das Limas e das Festas do Sr. Santo Cristo chegou a vez do Dia das Montras também sofrer a sua "adaptaçãozinha"....
Haja saúde e paciência!

domingo, dezembro 03, 2006

Citação (importante)

«e é preciso correr é preciso ligar é preciso sorrir
é preciso suor
é preciso ser livre é preciso ser fácil é preciso a roda
o fogo de artifício
é preciso o demónio ainda corpolento
é preciso a rosa sob o cavalinho
é preciso o revólver de um só tiro na boca
é preciso o amor de repente de graça
é preciso a relva de bichos ignotos
e o lago é preciso digam que é preciso
é preciso comprar movimentar comércio
é preciso ter feira nas vértebras todas
é preciso o fato é preciso a vida
da mulher cadáver até de manhã
é preciso um risco na boca do pobre
para averiguar de como é que eles entram
é preciso a máquina a quatro mil vóltios
é preciso a ponte rolante no espaço
é preciso o porco é preciso a valsa
o estrídulo o roxo o palavrão de costas
é preciso uma vista para ver sem perfume
e outra menos vista para olhar em silêncio
é preciso o lôgro a infância depressa
o peso de um homem é demais aqui
é preciso a faca é preciso o touro
é preciso o miúdo despenhado no túnel
é preciso forças para a hemoptise
é preciso a mosca um por cento doméstica
é preciso o braço coberto de espuma
a luz o grito o grande olho gelado

e é preciso gente para a debandada
é preciso o raio a cabeça o trovão
a rua a memória a panóplia das árvores
é preciso a chuva para correres ainda
é preciso ainda que caias de borco
na cama no choro no rogo na treva
é precisa a treva para ficar um verme
roendo cidades de trapo sem pernas»

Mário Cesariny, "Discurso sobre a reabilitação do real quotidiano", in manual de prestidigitação, Lisboa, Assírio e Alvim, 1981.

sábado, dezembro 02, 2006

É da vida....



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Croniqueta XLV ou O Fífia é um cidadão com C grande e, só não o é com S, porque seria erro duplo...



O Fífia é um cidadão exemplar. Vai às compras todos os dias. Não fica fechado em casa.
O Fífia é um cidadão que se recomenda, um pirilampo, cujo rabo luz, por festejo, associado à iluminação da sua cidade, por dever e respeito aos seus concidadãos.
O Fífia é um cidadão com C grande e, só não o é com S, porque seria erro duplo!
O Fífia é um tapete vermelho; deitado no chão, parece de rolo, em pé, até podia forrar as estátuas ou fazer laços.
Cheguem-se a ele varandas, escadas, paredes, janelas ou até vidros, que ele, sem dó nem piedade, esguicha luz do seu rabo iluminado. Certeiro, como uma seta e astuto como um disparo à moda do Robin dos Bosques, anda, atarefado em compras. Já comprou meias para a mãe; agulhas para as Tias e umas barbatanas para a namorada. Umas lindas e verdes barbatanas fluorescentes para daqui a ano e meio, ele e a Iveti irem passear nos parques subterrâneos da avenida marginal. Os dois cidadãos exemplares, que não andam de Mini-Bus, mas que, de certeza, trarão o carro para debaixo do chão da avenida; contribuindo assim, para o desafogo do centro urbano.
Mas, voltemos às compras do Fífia. As lojas cheias de novidade e os anúncios na TV deixam o seu coração aos pulos. Viajar. Ir comprar ao continente.
O Fífia, cidadão exemplar, que compra todos os dias, nem que seja um copo de água, a 0,14 cêntimos no Hiper, e sai de casa para passear tranquilo, às 5 da tarde, no Campo de São Francisco, vai ao continente e quando chegar espera ter à sua espera: um Diploma. Afinal, ele é o cidadão mais exemplar com o rabo mais luminoso, que os anjos da matriz. Ele é o nosso Fífia, que já leu o Verdadeiro Método de Estudar, e até se sente Verney. Desta vez, neste Natal, quer, nada mais nada menos, do que um Diploma de Cidadão Exemplar; ele que sai de casa todos os dias; ele que fotografa os buracos da cidade; ele que atravessa todas as ruas da cidade, mesmo as mal iluminadas, às 8 horas da noite mais a sua Iveti; ele que já se ofereceu para ser cartaz turístico, vestido de Toupeira; ele que, nas Festas do Espírito Santo, até andou de coroa giratória e musical, ele, sim, só ele, merece receber um Diploma.(Para mais tarde fica o nome de rua).
É um cidadão exemplar. Agora, que fez o pedido e, porque é cuidadoso, vai esperar que a edilidade o anuncie mesmo, com provas e tudo, que é para ter a certeza, que o que recebe não é, apenas, um prémio de consolação pelo esforço.
E, claro que, também espera ser convidado para a sessão; em caso de ele não estar, por estar a cumprir a sua cidadania exemplar e estar, quem sabe, no Porto ou em Leiria, a fazer compras, pode, sempre, fazer-se substituir pelas tias.
Isto, para depois não se dizer, por lá, que ele não confirmou a sua presença. Não estaria certo. Porém, o Fífia tem confiança e sabe que tudo correrá bem.
Ele há-de estar e receber beijinhos e, quem sabe, até se não leva uma medalha.
Aguarda, agora, a chegada do primo “jerIMIas”. O primo que vem da Europa para ficar alojado durante 3 anos, em casa das tias. Vem de surpresa. Só o Fífia sabe as razões da sua vinda e está muito contente com isso. Afinal, não é todos os dias que se tem a oportunidade de ter um primo "jerIMIas". Um primo Europeu, que há-de trazer novas modas. Um primo que, ao telefone, lhe perguntou: há aí estacionamento para bicicletas? Um primo, sem sombra de dúvidas, bom. Em casa das Tias, "jerIMIas" ficará de graça. Parece que o rabo dele também luz. E que as lâmpadas que lhe coroam o dito têm autonomia suficiente para se manter aceso nos próximos 3 anos. Uma sorte, pensou o Fífia acerca desta novidade. As tias ficam a ganhar.
Ele também.

!!!


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quinta-feira, novembro 30, 2006

Recomendação de Leitura



«A explosão brutal tem graus diversos de piedade: as coisas afastadas do seu centro chegam mais vezes ao dia seguinte. De qualquer modo, é impossível agir delicadamente quando a sala se encontra cheia de vísceras, restos de corpos. A delicadeza em certos momentos máximos é insultuosa.»


(Gonçalo M. Tavares,pp.200)

quarta-feira, novembro 29, 2006

Conselhos

A mente essencial divaga. Mete S´s nas algibeiras para teres sempre o trunfo de poderes multiplicar vozes e cruzar palavras, pessoas, lugares e momentos. Na memória, enfia chapéus para a chuva. Assentos circunflexos para alinhavares a alma; quando te parecer que é desta que ela se vai desfiar num pranto ou para quando achares que a tristeza vai levar a sua avante. Não há nada melhor para a alma do que um chapéu circunflexo. Não percas de vista a tua sombra. Anda como quem chega de viagem. Soletra a tua chegada. Dita a tua partida. Deves descobrir que unicamente, rigorosamente e plenamente são palavras tão doridas como pescadores, lavradores e armadores. Aprende as palavras dolentes. Não as percas. Há umas que fogem no bico das gaivotas. Outras, que mergulham nas rochas do porto da tua infância, onde, em tempos, o essencial era teres uma bóia para não morreres no mar. Sê da tua terra, da tua mãe e do teu pai. Sê dela e deles como todas as palavras que aprendeste e que te fazem ser disto: um homem feito de Liberdade. Escreve. Não te repitas muito. Não te escondas em vocábulos; não te prendas em analepses; não te percas nas metáforas. Cuidado com as hipérboles. Não compares. Critica. Critica muito. Opina. Por fim, aceita-te como essencial à construção da tua memória. Se os outros pararem, não desistas. Pessoalmente, resvalas, quase que afundas, divagas…mas não morres. Respira. Do fundo.
Então sim, meu querido amigo, estás pronto. Recomeça. Porque “(…) afinal o que importa é não ter medo/de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente: Gerente! Este leite está azedo! / Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir/ de tudo/ No riso admirável de quem sabe e gosta ter lavados e muitos dentes brancos à mostra.” (Mário Cesariny de Vasconcelos).
Nota de Abertura (Suplemento de Cultura/Novembro- disponível para assinantes na edição de 28.11.2006. Colaboraram nesta edição Carlos Matos,Mário Homem, Augusto Macedo, Célia Machado, Guido Teles e Ana Almeida)

segunda-feira, novembro 27, 2006

Recomendação de Leitura



"(...)"Simplificar" Fernando Pessoa, tomando de empréstimo alguma da sua linguagem, e reduzi-lo ao voto de um Barco para o Barreiro, é coisa em que cada um só deve cair uma vez. Fique pela parte que me toca, o molde da queda e o valor da experiência: as pessoas sabidas descobrirão depressa onde é que está o logro e onde pode anichar-se a autenticidade. As outras, não sabidas (entusiastas, estas!) servem-me o apetite de dizer para já alguma coisa que o poema não diz:

Que Fernando Pessoa é um grande poeta. Viajou sempre em primeira classe, mesmo quando estava parado.

Só as pessoas que não viajam ganham ódio às classes que o comboio tem. Quem alcança viajar, mesmo só em terceira, vai sempre radiante. Não anda lá a prender-se com essas coisas.

As pessoas que não viajam têm as suas qualidades, são como os chefes de estação: bondosos, diligentes, aplicados. Mas não viajam, pronto. Para que nos querem convencer que viajam?

Assim como a Poesia não é para um par de sapatos, assim Fernando Pessoa não é para todos os dias. Não consta, porém, que Pessoa haja querido monopolizar os dias. Se déssemos a Pessoa os dias que ele tem, faríamos como ele - e até podíamos, como ele, ser grandes, com muitos dias para ele e para muitos de nós, seus iguais num desastre.

Que não convém nomear.
"


Mário Cesariny
excerto de Fernando Pessoa, in as mãos na água, a cabeça no mar, lisboa,Assírio & Alvim, 2ª edição, 1985, pp. 23-24.

domingo, novembro 26, 2006

Delicioso, por isso roubado daqui

"AXIOMÁTICA (VOLUME II)

Se não és bom jogador não lamentes efusivamente o teu falhanço junto à baliza.
O Amor não é como o futebol.
Se ganhares muito balanço a bola sai por cima.
Quem gosta de futebol não deve ver a sua equipa jogar.
Os remates devem ter Cinco direcções: Canto superior direito e esquerdo, canto inferior direito e esquerdo e fundo das redes.
O Quarto árbitro é igual ao palhaço rico mas é pobre.
A Quinta velocidade é reservada aos extremos.
O jogador polivalente não é excelente em nenhuma das posições.
Um titular indiscutível é bom de bola.
O bom treinador não é bom dos cornos.
A tropa fazia muito bem àqueles que não recuam no terreno para defender.
Quando já viste o filme, já viste o jogo.
As botas brancas valem tanto como as outras.
Se chutares contra a barreira chuta com força.
As mudanças de flanco são o renascer da Primavera.
A Primavera precisa de andorinhas e tu precisas de alguém que se desmarque.
Quem joga no meio dos centrais merecia jogar com esporas.
Se pisares o adversário propositadamente não peças desculpa, é feio.
Quando vires o trinco correr de um lado para o outro sucessivamente é porque está feliz, não o ajudes ele pode levar a mal.
Cabecear de cima para baixo impõe que baixes os cornos.
Se fores guarda-redes faz o que te apetecer, mas faz bem e com certeza.
Atira-te para o chão só quando tiveres a certeza que vais cair.

Remates de primeira sem deixar cair a bola no chão é para gente instruída.
"
António Carlos Caroço

sábado, novembro 25, 2006

Post-(it)


daqui


As bonecas de saia verde e anel de diamante parecem “paragens de afecto”, raízes de tempo. Encaixadas na sua função decorativa são como os recados e as coisas que ninguém diz, mas deixa, como promessa, escrita em papel amarelo, a que hoje, chamam pomposamente Post-it. It. Não hit. (Esses são para as estrelas). Papéis amarelos com cola; de vários tamanhos. Amarrotados são casacos de palavras de manga curta e bainha por fazer, onde os nossos olhos podem, ou não, procurar a solução. Se existe.
O gato Puma entretém-se na sua função de observador. A ser verdade que os gatos pensam podia jurar que, como o outro da história, me esconde uma gaivota algures no jardim. Uma pequena, a quem ensina a voar. Uma, a quem deixa bilhetes, como sinais, escondidos entre os jornais da semana.
Eu nunca escrevi uma carta num post-(it) ...
Mas hoje, quase que o podia fazer; não fosse a ideia, quase certeira, que tenho de que daqui a bocadinho, o Puma vai finalmente apresentar-me à sua dama, a quem dá aulas de voar na minha Ausência.
Post (it):
Falando a sério, tão a sério quanto me é possível a esta hora. Não sei da distância dos amparos. Não creio que, na passagem de testemunho, as nossas ideias possam, sequer, desfrutar de mais alguma coisa.
Sei que há bonecas nas prateleiras, que elas são Teoria de qualquer coisa, indefinida quase nula. Está frio hoje. Talvez mais do que seria de esperar.
Há qualquer coisa aqui, que bate asas, que as bate devagar e voa.
Pode ser a gaivota do Puma ou, quem sabe, um anjo.
E, no fundo, era do do anjo que eu vinha falar.
Mas, nunca me dei bem com estas coisas...

Por isso, Post-it:
"Boa noite, eu vou com as aves"
(Eugénio de Andrade, último verso do Poema à mãe)

sexta-feira, novembro 24, 2006

Citação (importante)

"Se o fogo destruir a casa
E apagar o cal que caia a casa
Onde irei escrever o teu nome?

E se não escrever o teu nome
Como direi a alegria ao mundo?

Ainda que vigie como um sistema de alarme
E encha a minha boca de sirenes
Como direi na minha casa em chamas
Que és a única luz?

O chão carbonizado é a erosão do meu destino
Respeito oluto e não vou abrir caminhos:
Mas se tu és também o incêndio
Como não rebento nas cinzas?

E se o fogo destruir o homem que caia a casa
E apagar o coração
Como explicarei aos sem abrigo
O teu auxílio?

O relento não pode vergar-me
Porque sou mais resistente do que o hissope:
Mas se o fogo consome o sopro que me mantém de pé
Que chama porei em fronte quando o teu anjo vier?"


Daniel Faria

quinta-feira, novembro 23, 2006

terça-feira, novembro 21, 2006

É preciso um desenho!


imagem

"Faz-se luz pelo processo
de eliminação de sombras
Ora as sombras existem
as sombras têm exaustiva vida própria
não dum e doutro lado da luz mas do próprio seio dela
intensamente amantes loucamente amadas
e espalham pelo chão braços de luz cinzenta
que se introduzem pelo bico nos olhos do homem

Por outro lado a sombra dita a luz
não ilumina realmente os objectos
os objectos vivem às escuras
numa perpétua aurora surrealista
com a qual não podemos contactar
senão como amantes
de olhos fechados
e lâmpadas nos dedos
e na boca."


Mário Cesariny

domingo, novembro 19, 2006

Idola Flori


fotografia

"Eu sei diversas coisas
saber é afinal a minha única ocupação
Sei pouco de manhãs
mas talvez possam dizer de mim que amei o mar
e cada árvore que me viu passar
e insistir na vida como uma canção em voga
Quem mais que eu
quem foi esqueceu?
Estamos mal feitos pronto
Para quê a doçura no olhar
de uma mulher certos dias?
O morno calor do sol rasante pelas tardes
de setembro na senhora da guia
senti-lo em abril numa sala voltada ao poente
de súbito sabendo de todos os papéis
ou outra eternidade que não essa
Talvez ouvir egmont sentindo-me importante de repente
ou então conversar sobre o poeta à beira da água
chegar a mangualde ao pôr-do-sol
ou a duas igrejas na semana santa
ouvir os sinos na matriz vizinha
cheirar madeira nova nas gavetas
fechar a porta sobre todos os cuidados
cantar a triunfante juventude
não mais andar perdido de ano em ano
não mais a morte questão para ociosos
à tarde no café dos reformados
Oh quem me dera ser católico
ou pelo menos morar alguma vez
em lisboa ou nos arredores de lisboa
Não há remédio nenhum
esqueci-me de tanta coisa
Sei que isto não é grande coisa
mas nenhuma outra coisa me é dada
o que é preciso é que não doa muito
Depois que me escondam na terra como uma vergonha."


Ruy Belo

Galhofas



recebido por email: CMachado

quarta-feira, novembro 15, 2006

Hei-de experimentar...

You Should Be a Film Writer

You don't just create compelling stories, you see them as clearly as a movie in your mind.
You have a knack for details and dialogue. You can really make a character come to life.
Chances are, you enjoy creating all types of stories. The joy is in the storytelling.
And nothing would please you more than millions of people seeing your story on the big screen!


A ideia veio daqui.
Bruno Nogueira - Jovens Com Asas CAP2

:)

terça-feira, novembro 14, 2006

Aviso de Porta de Livraria


"Não leiam delicados este livro,
sobretudo os heróis do palavrão doméstico,
as ninfas machas, as vestais do puro,
os que andam aos pulinhos num pé só,
com as duas castas mãos uma atrás e outra adiante,
enquanto com a terceira vão tapando a boca
dos que andam com dois pés sem medo das palavras.

E quem de amor não sabe fuja dele:
qualquer amor desde o da carne àquele
que só de si se move, não movido
de prémio vil, mas alto e quase eterno.
De amor e de poesia e de ter pátria
aqui se trata: que a ralé não passe
este limiar sagrado e não se atreva
a encher de ratos este espaço livre
onde se morre em dignidade humana
a dor de haver nascido em Portugal
sem mais remédio que trazê-lo n'alma."


Jorge de Sena

in Exorcismos, Moraes Editora, 1972.

segunda-feira, novembro 13, 2006

Última Lição Prof. Doutor Machado Pires

Última Lição do Prof. Doutor Machado Pires, dia 13 de Novembro, às 16 horas, no Anfiteatro C, da Universidade dos Açores.
Tema: "O Ensino da Cultura Portuguesa".

Imperdível.

sexta-feira, novembro 10, 2006

Bom fim-de-semana


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Recomendação de Leitura

"(...) A linha tranca-se entre os meus dedos dos pés a cada passada que dou. Já falta pouco. Talvez uns cinco passos. Imagino crocodilos de boca escancarada, saliva nos cantos da boca, ansiosos pelo meu primeiro falhanço. Estão mergulhados num pântano tenebroso e lamacento. Delírio. Só lá estão os gatos. Parecem-me mais atentos agora. E com sede... Esperam que o copo caia. Aceno-lhes um manguito. Não reagem. Deixam-se ser apenas felinos. Dou agora o último passo e pronto... Cheguei ao fim da linha. Olho para trás e vejo que rebentou. A manta está suja e os gatos já se aninharam nela. Bebo o vinho de um trago só. Z de Zurique, P de Paris, C de Coimbra, H de Holanda, M de Madrid e X do que a senhora quiser. A reserva está feita. Obrigada nós."


Bicho-de-Conta

Citação (importante)

"Era uma vez um lugar com um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para outro, e encontravam-nos, a eles,
ao inferno e ao paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade.
As pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído.
E diziam: é o meu inferno, é o meu paraíso.
E não devemos malquerer às mitologias assim,
porque são das pessoas

e, neste assunto de pessoas,

amá-las é que é bom."


Herberto Helder

quinta-feira, novembro 09, 2006

poesia 7 Mário de Sá-Carneiro

Citação importante

segunda-feira, novembro 06, 2006

Recomendação de Leitura


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Os Pecados Vitais
( a partir de Al Berto)

"Primeiro: a Incandescência
Segundo: a Veemência
Terceiro: o Adubo
Quarto: a Ferida
Quinto: o Creme da Terra
Sexto: a Louquidez
Sétimo: a Portabilidade
Oitavo: a Juba de Luz
Nono: a Sirga
Décimo: A Juba de neon"

16.03.06


Artur Portela


Revistas Artes e Ideias nº 8 - o medo, Lisboa, editora alma azul, 2006, página 52

sexta-feira, novembro 03, 2006

Croniqueta XLIV ou quantas bolachas valem um homem?


Aproximando-se o Natal, com as ruas da sua cidade todas cheias de lâmpadas, nosso Fífia, levado por um espírito natalício, comprou um sino para usar pendurado ao pescoço. Agora, quando passa, no seu passo a trote veloz mais parece uma máquina de vender gelados, do que propriamente, um homem sério e santo; o mesmo que, aos Domingos, no seu carrinho vermelho ruivo, passeia mãe, tias e Iveti, pelas ruas da sua cidade. Fá-lo, ainda, à superfície, mas delira com a ideia de transformar o seu carro numa espécie de “Yellow Submarine”…
Anda, atarefado, porque um primo que tem na América, que é doutor nessas coisas das Educações Físicas e sabe mais qualquer coisa de psicologias, lhe disse que havia no mercado umas máquinas de dar chapadas; que na América não havia rico que a não tivesse, pendurada por detrás da porta do quarto de cama; de utilização rápida e satisfatória para prevenir erros, logo pela fresca. O Fífia procura um. Um aparelho desses que, de modo portátil, ele pudesse transportar nas viagens que faz; um aparelho que pequeno, escondido debaixo da aba do casaco, pudesse desembrulhar como um presente para aqueles que, em horas aflitivas, tanto para ele como para os amigos e companheiros que, em sentindo-se, aflitos, à beira de um deslize, quase a cometer um erro, se vissem necessitados de uma boa chapada para aliviar o dia; o peso de estar acordado de olhos em bico, diante da magnitude do sol ou da Terra, conforme os gostos.
Mais que a coroa gigante de rodas, mais que a coroa gigante a tocar o hino do Espírito Santo ou o carro transformado em lenda, mais que tudo isso, o que o Fífia queria mesmo era uma máquina de dar chapadas. Um aparelho levinho, que funcionasse a pilhas; que tivesse quatro velocidades, que fosse do tabefe ao soco, passando pela chapada ou pelo estalo e que, por brinde, desse, como quem não quer a coisa uma “mão de beiças”: isto para aqueles casos complicados de embeiçamentos e outros beicinhos do género. Como gostava. Finalmente, resolver-se-iam os seus problemas de desmedido alongamento verbal. Como não encontrou ainda nenhuma máquina dessas à venda na sua ilha, porque as que havia, nos últimos tempos foram compradas, num ápice, já pensou encomendar ao primo umas vinte e, num Sábado de sol, ir vendê-las para as portas da cidade. Imaginou já a campanha promocional; a música tocada por meia centena de jambés e as bailarinas vestidas de verde, dançando com as mãos esticadas para a frente como cebolas num desfile de vaidades. Nesse, não haveria máquina de chapadas que resultasse, pensa, enquanto sonha com a ideia de distribuir chapadas mecânicas e receber por cada uma 10 cêntimos. Dar chapadas a pilhas, tabefes que fariam avermelhar a cara dos embeiçados, nervosos, chatos e arrogantes…
O Fífia que não tem profissão; nem consta que saiba qualquer ofício quer ser distribuidor oficial de chapadas. Entrar pelas lojas e cafés oferecendo dedos mágicos, vindos de uma máquina de dar estalos e chapadas. Já vê os títulos do jornal: Fífia, o esbofeteador; Fífia o homem chapada; Fífia o salvador. Quem sabe, se não lhe fariam uma moeda; uma exposição; uma estátua? Quem sabe se, de repente, não conseguia o visto para ir visitar a América e o primo sócio? Quem sabe, se não voltava a usar barba?
Ao Fífia, cansa-lhe o ar dos que têm falta de levar umas bofetadas, encolhidos nos seus fatos verde tropa com gravatas esmeralda, disfarçando no seu afogueamento escarlate, uma bolacha querida… (Cansa-se de si próprio).
É que os homens não se medem aos palmos. Os Fífias também não. Mas quantas bolachas valem um homem?

Boas notícias

"O Café Central, um dos locais históricos da cidade de Ponta Delgada, vai reabrir a 14 de Novembro com uma imagem renovada, explicou o empresário José Carlos Pacheco, que alugou aquele espaço, fechado há mais de um ano.(...)"

Açoriano Oriental de 03.11.06

quinta-feira, novembro 02, 2006

Free Hugs Campaign. Inspiring Story! (music by sick puppies)

Free Hugs

Citação (importante)

PROCURA DA POESIA

Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda húmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.


Carlos Drummond de Andrade
roubado daqui

quarta-feira, novembro 01, 2006

Citação (importante)

Sem alternativa, não há escolha.

Edite Estrela (Prós e Contras em repetição, dia 31/10 na RTP/N: “Aborto - O referendo da discórdia…”)

terça-feira, outubro 31, 2006

Ventanias

Há cabeças onde não cabem cabelos e janelas, que abertas, deixam correr as correntes a fugir dos dedos malhados pela “pressa” cultural. Perde-se o tempo à vontade, como se o testemunho da corrida fosse uma roda de fadas e mochos, em cujas lunetas chique bate o badalo do Tempo, como um sino a marcar o ritmo da pressa com que se despejam letras nas sobras da sopa (requentada). Na dúvida, o salto guincha, quando cai, porque a cera na pele é tanta, que o culto mascarado, elevado pela sombra dos tacões dos sapatos, se amplia na base literária de um esboço. Não queiramos o barulho
das aparências; nem as asas fingidas dos anjos caídos das prateleiras. Não desejemos que as obras se despachem em edições de bolso com tamanho de algibeira.
Não deixemos que a Poesia morra no último degrau, a descer, de umas escadas a que faltam degraus, jogo de luzes, suficientemente iluminado, e, porque não (?),
amor…
Exijamos a capacidade reflexiva e reflectiva dos pensamentos livres dos homens livres
que passeiam nas avenidas. Produzamos cultura, como se a sentíssemos, de facto, a anima humana, que a raiz do tempo eleva além cronómetro contemporâneo.
O mar tem corrido sempre e as letras nos livros, nos lábios do actor ou na ponta dos dedos do escritor, são, nada mais nada menos, do que esta imagem de um Livro enorme,
onde, qual gaivota, em dia de chuva, as nossas mãos se unem e dançam com uma calma
cultural algures longe da pressa devoradora dos talentos.
Soletrar é importante.
Faz falta sentir como quem soletra uma ventania.

Nota de Abertura do Suplemento de Cultura do AO(para assinantes). Com textos/fotografias de Guilherme Marinho, Rodrigo Francisco, Berto Messias, Carla Cook, Paula Leal e Anabela Caldeira

segunda-feira, outubro 30, 2006

Se há copos o que é que falta?

Os loucos passeiam nos fatos engravatados de Domingo das missas marcadas pelo ritmo dos calendários. Nos postos de informação turística, inglesas e alemãs abraçam-se a mapas da cidade e falam em línguas estranhas das suas expectivas. (Não as entendo). Sou assaltada por um misto de confusão entre os dialectos tribais e as variações que daí advêm, como sinais…mas mais nada. (Não vale a pena empolar muito isto)
Nesta cidade, fica-se com a sensação de que viramos páginas, desde o momento, em que saímos de casa até ao momento em que encontramos uma outra Amália a cantar na esplanada do mesmo café de há muitos anos. (Está igual a si mesma). No rio não se ouve o barulho dos carros das vedetas. Ali, só o sol faz poses e fitas, mas em silêncio. Há crianças (semi) livres correndo em bicicletas de plástico, compradas para deslizar ao fim-de-semana, em corredores estreitos de cimento assinalados por um lettering de bike americano. Aqui o vento é transtornado e as pessoas, paradas em sintomático pause, lembram as asas das borboletas caídas e mortas, depois do esguicho do Dum-Dum atirado ao ar da minha criancice. Não há palavras para descrever a solidão dos passos; nem me parece que a avenida deste fim de tarde, quando todos regressam, certos, nos seus compassos predefinidos, como autómatos enjaulados nas cadeiras dos automóveis, seja realmente morada. As casas amontoam-se em (jogos de plasticina) e, nas varandas, no lugar das flores e da roupa estendida, nascem, como cogumelos, cadeiras de plástico e mesas protegidas por guarda-sóis “Modelo”. É a força do marketing, dizem os velhotes dos bancos de madeira verde desta estória em que cabe, por razões de lógica, um fio de lume, trazido, "em braços", pelas luzes dos anúncios publicitários da cidade contada. Neste ponto, entra um homem sozinho divagando nos espaços da memória, como o passado que, aos berros, diz assim:
Se há copos, o que é que falta?
- E, prontos,
exclama o coloquial.
Porque, afinal diz-se falta e logo aparece um suplente.
Mesmo que seja de retorno.
Pronto(s).

domingo, outubro 29, 2006

Recomendação de Leitura



Six Memos For The Next Millennium
1. Lightness
2. Quickness
3. Exactitude
4. Visibility
5. Multiplicity
6. Consistency

quinta-feira, outubro 26, 2006

Citação (importante)

"No fundo o que é enlouquecer? É sair de uma determinada norma, não é? É preciso muita coragem para se ser realmente louco."


António Lobo Antunes, in O Jornal, 30 de Outubro de 1992

Hoje,às 18h30, no Teatro Maria Matos, em Lisboa, apresentação do livro de António Lobo Antunes: Ontem não te vi em Babilónia.

segunda-feira, outubro 23, 2006

Com medo de o perder nomeio o mundo*

imagem

Eu sou, entre este e o outro tempo,
Uma vírgula marcada na distância pontuada;
Alguém a quem faltaram dedos mágicos e fadas
Para a corrida em patins desde a escola até à casa verde
Com janelas verdes e uma campainha de tocar a cantar.
Sou um sapato calçado numa imaginação em pausa;
Um atilho desapertado (nela mesma) revolta e devolvida
À sola, enrolada por baixo, não dita, segredada…
E sou, como certeza e credo, na distância do tempo dos navios no mar,
Nas suas chaminés altas e fumegantes o pescador que herdei nos braços,
O lavrador que, em tempos, me pegou ao colo ou, pura e simplesmente, o homem que, nos cabelos brancos, trazia a minha mão pequena impressa como um carimbo de passageiro frequente.
Tenho pessoas dentro. A minha gente.
E, nos meus olhos, sei-o, há muito tempo, havia isto por escrever.


Fajã de Baixo, 20/10/2006

* Verso do poema de Vitorino Nemésio "Nomeio o mundo"

sexta-feira, outubro 20, 2006

Bolas e Fitas

A cidade de Ponta Delgada veste-se de Natal.
Estamos em Outubro.
Chegará o velho de Natal no dia de Todos os Santos?
...

quinta-feira, outubro 19, 2006

Recomendação de Leitura



"(...) o estúpido, pelo contrário, não suspeita de si mesmo: julga-se discretíssimo, e daí a invejável tranquilidade com que o néscio se alicerça e instala na sua própria necedade. Como aqueles insectos que não há maneira de tirar do oríficio onde vivem, não há modo de desalojar o estúpido da sua estupidez, levá-lo a passear um bocado mais além da sua cegueira e obrigá-lo a contrastar a sua rude visão habitual com outros modos de ver mais subtis. O estúpido é vitalício e sem poros. Por isso Anatole France dizia que um néscio é muito mais funesto que um malvado. Porque o malvado descansa algumas vezes; o néscio, jamais.(...)"

(Ortega Y Gasset, A Rebelião das Massas, Relógio D´água, Lisboa, s.d., pp. 82)
preço: 13,09 euros

quarta-feira, outubro 18, 2006

"A essência da Poesia"

"Não aprendi nos livros qualquer receita para a composição de um poema; e não deixarei impresso, por meu turno, nem sequer um conselho, modo ou estilo para que os novos poetas recebam de mim alguma gota de suposta sabedoria. Se narrei neste discurso alguns sucessos do passado, se revivi um nunca esquecido relato nesta ocasião e neste lugar tão diferentes do sucedido, é porque durante a minha vida encontrei sempre em alguma parte a asseveração necessária, a fórmula que me aguardava, não para se endurecer nas minhas palavras, mas para me explicar a mim próprio.
Encontrei, naquela longa jornada, as doses necessárias para a formação do poema. Ali me foram dadas as contribuições da terra e da alma. E penso que a poesia é uma acção passageira ou solene em que entram em doses medidas a solidão e solidariedade, o sentimento e a acção, a intimidade da própria pessoa, a intimidade do homem e a revelação secreta da Natureza. E penso com não menor fé que tudo se apoia - o homem e a sua sombra, o homem e a sua atitude, o homem e a sua poesia - numa comunidade cada vez mais extensa, num exercício que integrará para sempre em nós a realidade e os sonhos, pois assim os une e confunde.
E digo igualmente que não sei, depois de tantos anos, se aquelas lições que recebi ao cruzar um rio vertiginoso, ao dançar em torno do crânio de uma vaca, ao banhar os pés na água purificadora das mais elevadas regiões, digo que não sei se aquilo saía de mim mesmo para se comunicar depois a muitos outros seres ou era a mensagem que os outros homens me enviavam como exigência ou embrazamento. Não sei se aquilo o vivi ou escrevi, não sei se foram verdade ou poesia, transição ou eternidade, os versos que experimentei naquele momento, as experiências que cantei mais tarde.
De tudo aquilo, amigos, surge um ensinamento que o poeta deve aprender dos outros homens. Não há solidão inexpugnável. Todos os caminhos conduzem ao mesmo ponto: à comunicação do que somos. E é necessário atravessar a solidão e aspereza, a incomunicação e o silêncio para chegar ao recinto mágico em que podemos dançar com hesitação ou cantar com melancolia, mas nessa dança ou nessa canção acham-se consumados os mais antigos ritos da consciência; da consciência de serem homens e de acreditarem num destino comum."


Pablo Neruda, in Nasci para Nascer (Discurso na entrega do Prémio Nobel)

terça-feira, outubro 17, 2006

Citação (importante)

Discurso ao príncipe de Epaminondas,
mancebo de grande futuro



Despe-te de verdades
das grandes primeiro que das pequenas
das tuas antes que de quaisquer outras
abre uma cova e enterra-as
a teu lado
primeiro as que te impuseram eras ainda imbele
e não possuías mácula senão a de um nome estranho
depois as que crescendo penosamente vestiste
a verdade do pão a verdade das lágrimas
pois não és flor nem luto nem acalanto nem estrela
depois as que ganhaste com o teu sémen
onde a manhã ergue um espelho vazio
e uma criança chora entre nuvens e abismos
depois as que hão-de pôr em cima do teu retrato
quando lhes forneceres a grande recordação
que todos esperam tanto porque a esperam de ti
Nada depois, só tu e o teu silêncio
e veias de coral rasgando-nos os pulsos
Então, meu senhor, poderemos passar
pela planície nua
o teu corpo com nuvens pelos ombros
as minhas mãos cheias de barbas brancas
Aí não haverá demora nem abrigo nem chegada
mas um quadrado de fogo sobre as nossas cabeças
e uma estrada de pedra até ao fim das luzes
e um silêncio de morte à nossa passagem


Mário Cesariny, Manual de Prestidigitação, Lisboa, Assírio & Alvim, 1981

segunda-feira, outubro 16, 2006

Croniqueta XLIII ou o Fífia é um Lagópede piador ou a calúnia é a arma dos vencidos ou “Cuidado, Casimiro, cuidado com as imitações”*…





"(...)Se viver é distinguir-se, o orgulhoso deveria providenciar para não se parecer com ninguém. Mas a inveja, sob a sonante designação da emulação, trai-os: os soberbos vêem antes os modelos honrados e celebrados e querem ser celebrados e honrados a par deles, ou mesmo superá-los e desalojá-los, e não se dão conta de que são obrigados, para começar, a colocar os pés nas suas pisadas e no seu caminho.(...)"

"Os Imitadores", in Relatório sobre os Homens de Giovanni Papini.

Se o Fífia fosse uma moeda estaria toda dentada, dado que são muitos os dentes que, ultimamente, têm tentado roê-lo procurando, entre fios de palhaços, ainda não deixados no baú e carros de corrida de pista, o sumo daquelas suas ideias ditas, em público, como se fossem Ideias reais. Eles gostam. Eu não.
No fim, depois da luz de néon apagada e da meia dúzia de pessoas, cujo magistral rabo arrependido, dói na ocupação de seis de cinquenta cadeiras dispersas pela sala; depois de lidas as resenhas do que, afinal, foi proferido ali, pelo Fífia que ainda balança entre a idade da fralda e a mão da mãe, entre a fita e o mimo ou, pura e simplesmente, entre o amarelo e o branco, depois disso tudo; dá-se nele um ar que não arde, de um mar que não corre e, qual gafanhoto, apanhado na correria da chama, o Fífia queda-se e desaparece. Afinal, não foi há muito, muito tempo assim; que, no meio dos foguetes e das velas, soprou poucos anos mais que a maioridade. Agora, anda atarefado nesta sua era de ser grande, estendendo, aflito, passadeiras vermelhas para passarem os velhos e trôpegos, que se deleitam com as suas ideias miméticas. O Fífia é, por isso, uma vergonha para a “Poética” de Aristóteles. Para actor também não serve e quando, enredado nas suas próprias palavras, citando dezenas de mentores, sem dizê-lo, o Fífia parece uma corda bamba, cujas pontas, queimadas por um isqueiro de marca, deslizam na passadeira de mais um tempo. O Fífia não tem remédio que lhe valha. Os santos desconfiam dele e as esmolas que lhe dão não passam de traições ao dente. O Fífia não dá por isso. É tacanho. Egoísta. O Fífia sofre do mesmo mal de que sofrem aqueles que, mesmo passados pelas tormentas, mesmo levados em braços depois das derrotas, mesmo vendo, sentindo, cheirando e ouvindo tudo às claras, se recusa a querer ver, querer sentir, querer cheirar e querer ouvir o tempo de hoje. Prefere as conversas ralas, que como as papas, se derretem na boca dos ouvintes. Prefere as palavras poucas com trocadilhos de meia tigela de caroço. Prefere as distâncias imaginárias, quando monta no seu burro de duas patas, disfarçado de Lagópede e pia as suas ideias tristes, pouco claras e quase desmaiadas. Se o Fífia fosse uma luva teria dois dedos. Um para virar as páginas dos livros grandes que lê (grandes em tamanho) e o outro para por no ar à espera de vez. Se o Fífia fosse um alguidar teria asas dos lados e seria opaco. Dentro, guardar-se-iam batatas greladas pelo tempo de espera. Se o Fífia fosse uma luz de janela estaria sempre a apagar e a acender tal é a sua pressa para chegar onde já não está ninguém. Se o Fífia fosse um buraco teria fim sem começo, porque o nosso Fífia de hoje não atinou ainda com a forma de começar e, ao invés, deleita-se com fins de histórias repetidas e já sem nexo…O nosso Fífia, a prazo, tem data de há vinte anos.


* Sérgio Godinho

Agenda



Praia da Vitória de 27/10 a 05/11

segunda-feira, outubro 09, 2006

Croniqueta XLII ou o Fífia é uma carpideira...


Em todos os poleiros, onde se lhe dá garantia de som e assistência, o Fífia aparece. Ele é discurso de mangas arregaçadas, de gravata pendurada no gargalo ou, se mais descontraído, como se, vindo das terras de longe, depois da fartura da ausência, lhe tivesse acudido o sol da jovialidade. Tudo como num soneto de vitória, cujas regras das quadras e tercetos, se perdessem numa obra de cordel. Porém, para mal dos nossos pecados, Fífiazinho não se cansa e qual disco riscado lastima-se e lastima-se e lastima-se diante da assistência que, garantida, aplaude.
O Fífia parece um cartão às tiras; desfiado pelo ensopado da água; morto por um urro de bravura, como, se em chegando-se ao palanque, as hostes se levantassem em peso, não para o mandar embora, mas antes para o abraçar e beijar qual Galaaz na conquista do pote de oiro, perdido nas selvas negras de uma floresta deserta do arquipélago. Mas este Fífia não é Galaaz, nem consta que o poço onde se enfiou até aos artelhos tenha oiro para lhe dar. Pobre. Mísero e escuro é o lugar onde está. Só assim se justifica a visão triste e aflita que tem de tudo e de todos. Na queda, dizem, bateu com a cabeça e sem sombras que lhe valessem nem guardas para o defender, pôs-se a modos de levar um susto. Assim foi. Ganhar a vida. Ser rei (sempre esta qualidade real a pesar-lhe a consciência, como um desejo pleno, uma conquista, uma lembrança!)e correr entre os nativos despidos e as nativas grávidas de crianças para aculturar.
O Fífia parece uma carpideira profissional: chora o defunto alheio; o que nos confunde. Sentimos uma certa teatralidade no modo como põe a cabeça sobre a cena, enquanto da boca lhe vão saindo todos os sinónimos de catástrofe que possamos imaginar.
O Fífia não ri; chora e nestes dias de chuva mais forte, o Fífia no “glamour” dos seus mais de 40 anos, não sendo propriamente uma pessoa desconhecida do público, chega a deixar atrás de si, um rasto de pena. O Fífia é daquelas pessoas que irrita; porque fala, fala, fala, pede desculpa pelo meio, a cada duas frases e depois, não cansado, de boca aberta, como se estivesse esfomeado, mama nas palavras friorentas que vai deixando cair dos beiços como fel. Para ele, não há mistérios nem casos por desvendar; tudo é forma, arco e concreto. Tudo se desenha no papel. Rolando, entre a gramática dos seus dias, de saco de lenços preso ao cinto das calças, distribui sorrisos aflitivos como quem entre uma carpeirice inglória e um lençol de lágrimas vãs, pede, roga e implora para o deixarem ficar. Afinal, que havia de ser o Fífia sem um ai para suspirar? Que havia de ser do Fífia sem a cobiça a suspirar-lhe nos pólos como uma garrafa meio bebida, cujo conteúdo, por ser velho, está azedo e cheio de mofo? Afinal, que havia de ser deste Fífia sem um defunto para chorar; um que fosse melhor para o seu palrar; um a quem se deitasse o olho mais depressa e, a pronto pagamento, se chorasse, em troca do lugar.
O Fífia, este Fífia, em cuja cabeça mora, suspensa uma lâmina de corte fino, anda desesperado, sozinho e triste, vertendo pela raiz do seu cabelo, a “vã cobiça” e a não “glória de mandar”…

(Este Fífia vai zangado)

Citação (importante)

"Recomeça...
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar
E vendo,
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças."

Miguel Torga, Sísifo


Citação (importante ) que dedico ao Hermenegildo Galante na esperança de que as suas arrejeitadas voltem, porque nos fazem falta coisas como esta:

"No jogo há sempre quem lastime a derrota pela ausência da sorte.
Na vida há sempre quem se queixe da falta de liberdade pela incapacidade própria de ser livre.
Num ou noutro caso só a santa paciência pode ajudar.
Eu cá não sou santo e a minha paciência tem limites."

D´Arrejeite, a 23 de Junho de 2006

sexta-feira, outubro 06, 2006

Canção de Estar em Terra


Fotografia:AM

"Da sede meu amor farei um barco.
Uma vela no porto. E ao vê-la perto
eu direi meu amor que por ti parto
e fico e firo e faço e sigo e ardo.

Direi a rosa o cravo o trevo o cardo.
Darei o corpo, amor. Direi um astro.
Ai flor de quem está farto farto farto
de rimar contra a maré em pinho incerto.

Que mais direi amor? Eu que maldigo
eu que mal amo as coisas conquistadas
que mais direi? Anéis corais espadas?
Já mal me há-de bastar o que eu não digo.

É aqui, de bruços sobre a espuma
que o mar nos causa a dor de estar em terra.
E as palavras nos doem uma a uma.
E os homens em Lisboa fazem guerra."

Joaquim Pessoa
125 poemas: antologia poética. 3ª ed. [Lisboa]: Litexa, 1989, p. 67.

quinta-feira, outubro 05, 2006

Citação (importante)

Não importa sol ou sombra
camarotes ou barreiras
toureamos ombro a ombro
as feras.
Ninguém nos leva ao engano
toureamos mano a mano
só nos podem causar dano
espera.

Entram guizos chocas e capotes
e mantilhas pretas
entram espadas chifres e derrotes
e alguns poetas
entram bravos cravos e dichotes
porque tudo o mais
são tretas.

Entram vacas depois dos forcados
que não pegam nada.
Soam brados e olés dos nabos
que não pagam nada
e só ficam os peões de brega
cuja profissão
não pega.

Com bandarilhas de esperança
afugentamos a fera
estamos na praça
da Primavera.

Nós vamos pegar o mundo
pelos cornos da desgraça
e fazermos da tristeza
graça.

Entram velhas doidas e turistas
entram excursões
entram benefícios e cronistas
entram aldrabões
entram marialvas e coristas
entram galifões
de crista.

Entram cavaleiros à garupa
do seu heroísmo
entra aquela música maluca
do passodoblismo
entra a aficionada e a caduca
mais o snobismo
e cismo...

Entram empresários moralistas
entram frustrações
entram antiquários e fadistas
e contradições
e entra muito dólar muita gente
que dá lucro as milhões.

E diz o inteligente
que acabaram as canções.


"Tourada", Ary dos Santos

terça-feira, outubro 03, 2006

segunda-feira, outubro 02, 2006

Riscos


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Nas ruas, as árvores recolhem as folhas, porque na passagem dos dias, os riscos apontam circunferências enormes, traçadas por compassos nas folhas de papel, aonde, por exigência real, as vagas aumentam o tamanho. Nas janelas das vizinhas, enquanto umas esperam despiste, outras riem de prazer; há umas que sorriem…É um risco. A divisão do riso ao sorriso. Outro risco.
Temos disto. Os riscos de pessoas com narizes desapontados e dedos mindinhos grandes inclinados no ângulo dos nossos olhos tristes, porque a tabuada insiste num jogo de cartas batoteiro, onde o jogador, o senhor do canto, que veste casaco de menina e, por acaso, tem as unhas pintadas, cofia o bigode basto em riscos de sujidade. Os riscos dos olhos dele, as mãos riscadas de tinta e o ar de risco, espevitado como um grão de arroz que, por distracção, deixamos perder na placa do fogão, entre duas garfadas, para revirar o peixe e as batatas dentro do caldo. Os riscos do mar sorridente, porto adentro, como uma criança contente com a chegada do pai. Os riscos dos cabelos deles e delas e as marrafas riscadas, certas e pontiagudas, como as asas dos meninos de bibe, em fila indiana, a caminho do jardim, em passeio outonal. Os riscos nas suas mochilas, autênticos autógrafos de um tempo por preencher nos seus cadernos do Homem-Aranha.
Falta traçar o risco debaixo, o do convés. Não risques o chão com esses sapatos. Tira as mãos, não risques o vidro! Risca aqui. Risca acolá. Olha que se riscas isso, eu risco-te da minha lista de aniversário. (Corro o risco de não acabar isto). A minha vida toda riscada. Linhas, agrafos, letras, qualquer coisa de indiferente, que me fica, que me pertence, como as pegadas nas areias das praias dos Açores riscadas nos mapas. Riscos. Os riscos das borboletas. O riscar da caneta na folha branca e cansada. O risco da chave. O som do risco. O risco das gaivotas no céu, voando, de asas abertas. (O risco de me tornar repetitiva). À noite, quando chove, ou por acaso, o vento toma ares de maldisposto; à noite, quando a lua desaparece, as estrelas não chegam a vir e o ar não promete bom tempo, tomo no meu colo o risco de escrever e, então, balançando na corda do sono, naquele adormecer que não chega, risco-te, traço a traço, linha a linha, uno-te até tomares forma e seres isto.
Eu não me esqueço.

Nota de Abertura, Suplemento de Cultura Açoriano Oriental (27/09/2006)

sábado, setembro 30, 2006

Recomendação de Leitura


"Não há limite que não seja por ele suportado.
Suporta todo o cansaço.Traições,fadiga,falhanços.
Aconteça o que acontecer tens uns corpo que pesa;
E um chão, mudo,imóvel, que não desaparece."


Gonçalo M. Tavares, "Chão", in 1, Relógio D´Água, Lisboa, 2004, p.115.

sexta-feira, setembro 29, 2006

Galhofa



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Ser ou Não Ser

"Qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca.
Se os novos partem e ficam só os velhos
e se do sangue as mãos trazem a marca
se os fantasmas regressam e há homens de joelhos
qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca.

Apodreceu o sol dentro de nós
apodreceu o vento em nossos braços.
Porque há sombras na sombra dos teus passos
há silêncios de morte em cada voz.

Ofélia-Pátria jaz branca de amor.
Entre salgueiros passa flutuando.
E anda Hamlet em nós por ela perguntando
entre ser e não ser firmeza indecisão.

Até quando? Até quando?

Já de esperar se desespera. E o tempo foge
e mais do que a esperança leva o puro ardor.
Porque um só tempo é o nosso. E o tempo é hoje.
Ah se não ser é submissão ser é revolta.
Se a Dinamarca é para nós uma prisão
e Elsenor se tornou a capital da dor
ser é roubar à dor as próprias armas
e com elas vencer estes fantasmas
que andam à solta em Elsenor."

Manuel Alegre

quinta-feira, setembro 28, 2006

quarta-feira, setembro 27, 2006

Croniqueta XLI ou o Fífia não tem papel e as galinhas não têm dentes ou o plural de um cante a palo seco


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Solilóquio. Trópico. Asfalto, o Fífia de lado, abalado pela temperatura do rasgo lembra batatas de saco, empacotadas a prazo, como as estrelas dos poemas que, escritos, lembram missais de improviso. Ala. Forte, o estandarte das ideias ou os ideais mudados, trocados, dados como uma rima de norte, em cujo primeiro verso sagrado acautela a máxima: Todos diferentes, todos iguais.
O Fífia é plural(mente) banal. Uma baliza sem rede; uma bola vermelha sem ar, cujas funções agravadas podem tornar-se, num breve espaço de tempo, em nariz de colar na cara pintada de "artista". O Fífia não tem papel. Tem pergaminho enrolado com fita encarnada, gosta de gamas de morango e de usar, por estilo, o cabelo por detrás das orelhas preso às cartilagens capilares escassas com que, ocasionalmente, sustenta as suas afirmações. Na desgraça do traço oratório, o Fífia defende-se pelo plural; quando na verdade dita entre dentes: é só um. Porém, a unidade postiça lembra aos mais atentos, uma implantação sem raiz. A coroa, sempre a coroa…Sem poderes de coroação nem lógica de hereditariedade, o nosso Fífia de membranas interdigitais assemelha-se ao mais feio dos patos, cujo grasnar desengonçado assume para os espectadores, lógicas de fita e inacção.
Não justifica o momento, os passos leves do ser nem cuida que, os balões dos tóxicos gases exalados por metáforas de pacotilha insistidas e repetidas possam dotar o Fífia de um corpo de arma e voz. Todo ele é dor, inchaço, custo. Tudo nele é pó, massa e aparelho. Não verga, é certo, mas contorce-se como um fio de plasticina. Porém, longe das personagens de infância como o plasticman, o Fífia enrolado em chumbo, adquire um brilhar quase incandescente, como o sol, que, raras vezes brilha na metereologia da nação; pintado numa tela a 3 D para as ilhas dos Açores. Enfeitado e raro.
A mensalidade do Tempo Fífiador eleva a responsabilidade da maiúscula criatura à qual falta o juízo deixado no espaço livre na boca para, uma vez que seja, no lugar do juízo, possa nascer ou crescer, um sorriso Colgate e real. Sem ela, essa realidade sorridente, o Fífia não poderá, jamais, valer um furo no calendário da Humanidade; ficando, por isso, resumido ao buraco negro da sua existência, aonde o som do bafo da banalidade é tão grande que não deixa ouvir e perceber o "canto dos cisnes", que, segundo ele, lhe sai dos poros, por inspiração. Essa, já sabemos, como (não) corre, acabando mastigada na dentadura de um castor, cujo dique debaixo do chão é presente para as toupeiras. Na lógica Fífiana: as galinhas não têm dentes. Têm bicos. Bicos adocicados e fofos como as nuvens a três dimensões nos ecrãs televisivos. Ficam-lhe bem. Ara senão.
O Fífia é um cante a palo seco como o poema de João Cabral de Melo Neto...

segunda-feira, setembro 25, 2006

Croniqueta XL ou o Fífia é um cicerone de asas invisíveis e máquina de rolo...



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O Fífia está desajustado, cómico e quadrado. Em pé, parece uma palhinha de fundo branco e riscas amarelas; deitado um colar de contas. Porém, como não sabe contar nem gosta de Coca-Cola, o Fífia desajustado, cómico, quadrado, por vezes, espantado, desusado, pasmado, é, nada mais, nada menos, em pé ou deitado, um Fífia fífado; um guardanapo dobrado, um lençol estendido ao vento ou, pura e simplesmente, um banco de pé quebrado. Nas ruas, fotografando os passeios, vendo no ladrilhado das pedras as marcas de cimento, pensa serem selos, que é como quem diz bordados, diferentes dos que a mãe, as tias, em quem tem exemplo para tudo, fazem aos dias de semana para vender na quermesse da freguesia, onde as raparigas atrevidas (como ele as chama) vendem bilhetes, de onde saem bonecas de saias de folhos e canecos de loiça doirados das beiras. Os bordados da família são muito mais bonitos e fazem o gosto aos locais, quando entre bombons e roqueiras, cantigas esganiçadas e crianças aos berros pelos balões perdidos na curva do vento, sai um bordado da sua tia à vizinha do canto da rua. O Fífia comprou a máquina e agora é um tal retratar. Parece um autómato de máquina ao pescoço, presa por uma coleira, que diz: “I love Ponta Delgada”… Entretido, o Fífia fotografa tudo. Às segunda-feiras, depois de um fim de semana todo fotografado, lá está ele à porta do Hipermercado, à espera que abra a loja de fotografia para revelar as suas fotos. Depois, enfia-as em pequenos pacotinhos (porta-retratos); oferece as melhores às tias e mãe e pronto. Está assinalado mais um fim-de-semana. Marcado a verde com a data, o registo das pessoas que encontrou, as suas discrições e descrições; os seus ares, tudo. Qual missal, o Fífia explica tudo bem explicadinho para que daqui a uma centena de anos se saiba, que o poeta Fífia, escritor célebre, romancista de renome e mais qualquer coisa que daqui por 20 anos ele há-de descobrir, passava as manhãs e tardes dos Sábados e Domingos fotografando numa máquina de rolo, baratinha, comprada na feira da ladra, em Lisboa: a sua cidade, as suas gaivotas, as esplanadas, as pessoas, que passeavam com as famílias e os cães, a mãe que gritava dentro do carro, as razões dos seus gritos, as crianças esgazeadas….Enfim, não há cidade que não escape sem ter o seu Fífia. Um cicerone de asas invisíveis, um ser que entre a brisa e a chuva miudinha do Outono, deambule num passe doble inglês, lambendo um gelado, mas sempre de olho debruçado para a objectiva e caneta no dedo pronta a apontar um sobrolho mais levantado, a razão da elevação da sobrancelha ou, porque não, descrever as meias verdes da figura pública que aos Sábados compra pão sempre na mesma padaria. Afinal, o que é de uma cidade (verdadeiramente) sem um Fífia? Um tipo a quem se pergunte: E x? E ele diga logo: x levantou-se, vestiu-se e veio tomar café para a avenida, mas vinha com outra que não a mulher, depois comeram pasteis, e foram passear de mão dada. Ou então, um Fífia a quem se pergunte: Que horas eram quando os viste? E ele diga de imediato: Well, de óculos na ponta do nariz e ar importante: 10h20, pararam o carro e sentaram-se no café. Ele bebeu água. Ela café. Depois beijaram-se. Queres ver a fotografia?
O Fífia é assim um ser exacto. Um ser que de abstracto não tem nada; nem a ponta das orelhas. Um Fífia que a frio vale tudo, mas que, a quente, mete o rabo entre as pernas e muda de nome…É Fífia. E pronto.
-Chega!, diz ele.
(O pior é que nunca o vemos partir.)

domingo, setembro 24, 2006

Citação (importante)

"O que me impressiona, à vista de um macaco, não é que ele tenha sido nosso passado: é este pressentimento de que ele venha a ser nosso futuro."

"Da Evolução", in Caderno H, Mário Quintana

sábado, setembro 23, 2006