terça-feira, dezembro 25, 2012

Aos amigos

Se não fosse o mar de inverno a rebentar nos olhos das pessoas e o tempo a parecer que morre nas mãos mais depressa do que nunca. Se não fosse a chuva a escalar-nos a cara, de volta a baixo como as lágrimas de rir ou de chorar diria (sem dúvidas) que talvez pudessem ainda ser inventadas novas formas de escrever/dizer Dezembro… Mas o mês vai sendo isto. Num gerúndio demorado a que o tempo vai acudindo como vai podendo ou como pode ir sabendo… (Demoram-se os dias no Natal mais do que a (minha) ternura pode permitir). Dezembro lembra sempre as pessoas ausentes. E as notas da sua ausência são como um “piano chorado”, sem comiserações, mas frio, doloroso, em nada repenicado, a tocar solto em lugares abandonados, inabitados, sós como palmas secas em sala vazia de alguém. Dezembro devia mesmo assim fazer-nos morar mais algum tempo. Não morar só de dia. Nem só de noite. Dezembro podia fazer-nos recordar que há sempre, mesmo que por detrás das cortinas e, durante todo ano, quem vá espreitando e nos veja passar. Sempre. (Dezembro vem cheio do vermelho dos baldes da praia, onde antes era possível guardar o mar e uma praia inteira de covas e castelos e conchas, de pequenos reis (só de brincar). A mão da mãe a apertar a nossa. O pé do pai a acompanhar o nosso. Dezembro (agora) a levar-nos pelo ar.) Às vezes, morar mais vezes faz falta. De(morar) faz ainda mais falta. Dia após dia. Demorar no sentido de prestar mais atenção. As notícias de Dezembro trouxeram caridades incríveis. Retratos de uma sociedade que é sobretudo egoísta e hipócrita mas que o vermelho dos tules nas salas de oferta de jantares e brinquedos foi disfarçando e trocando, aqui e além, atenção e “amor ao próximo” por uns minutos de televisão… Uma pena. Lamentável. Devíamos ter todos como premissa a ideia de que nos basta sermos simples e possíveis, como escreveu António Lobo Antunes ou de que é bom não ter ambição maior que o livre espaço, como também escreveu o poeta da ilha das Flores, Pedro da Silveira, no seu célebre Soneto da Eternidade. Este é o último “Serenamente” de 2012. Dedico-o aos meus amigos. “Os amigos” – escreveu Pedro Paixão – “sobrevivem aos fins do mundo. Este é o único critério (…) ” Há várias formas de fim do mundo. Entre elas a forma como se reagiu, por toda a parte, ao fim do mundo “anunciado” pelos maias (e por outros magos da nossa actualidade). Por ora não é que tenhamos chegado ao fim do mundo, nem tanto que Dezembro tenha caído antes do fim do ano, enrolado nas fitas que o Natal vem trazendo, ano atrás de ano… Leiam-se as fitas como se fossem slides e os meus amigos que lerem estas linhas façam de conta que já estamos em Janeiro. Serenamente, Açoriano Oriental, 25/12/2012

terça-feira, dezembro 18, 2012

Contra “sorvêtxis” não há Fado que nos valha

Notícias recentes (não desmentidas) dão-nos conta de que o Governo brasileiro prepara um decreto presidencial para adiar a vigência obrigatória do Novo Acordo Ortográfico para 31 de Dezembro de 2015. Por cá (quase) ninguém se manifestou, cumprindo como sempre tudo o que é imposto, mesmo que sem explicação dada. Abrigámos um acordo que nos delapida como povo das nossas mais enraizadas etimologias e apelidámos os que por essa defesa se “bateram” de “antiquados” e “chatos” com o argumento (?) de que farmácia já se escreveu com “ph”… Esquecemos que uma pátria também se faz de língua e que a gente não é só feita de mãos e sapatos. Não soubemos proteger a língua portuguesa e agora assistimos impávidos e serenos ao adiar da vigência obrigatória no Brasil. Escrevemos “espetáculo”; “ata” e “ação” e estamos muito felizes porque já não damos erros de acordo. Somos parvos. Mais uma vez parvos. Apressados e ridículos. De terras brasileiras chegam mais notícias: de que o acordo está aquém do que poderia ser; de que é preciso rever tudo; de que os professores não sabem o que vão ensinar. Parece até – pelo que se lê – que o Governo brasileiro quer convencer outros países, incluindo Portugal, a fazer uma mudança total do acordo. (Sem dramas, podíamos ter aguardado mais um bocadinho). Mas o “sorvêtxi” é de facto mais forte que o Fado. E um “ônibus” ao pé de um “cacilheiro” é mais que um avião. Fomos, mais uma vez, os bobos da corte. Apressados na imposição, “adotamos” o Acordo e deixámos cair o “pê” de Portugal, de Pátria e de País sem dó e sem piedade. Porém, muito contentes porque o Fado é Património da Humanidade. Somos um país de bem-mandados e gostamos. Seja em brasileiro ou em alemão. Líricos Sempre que nos vejo – portugueses – enfiados nestes papéis lastimáveis, recordo-me de um livro de António Lobo Antunes, “As Naus”, cuja leitura recomendo vivamente. O romance traz para o século XX as figuras do discurso épico da história de Portugal e encena o desfecho trágico da colonização africana. As várias personagens do período de glórias ultramarinas, como Luís de Camões e Vasco da Gama, entre muitos outros, voltam ao cenário português, agora no papel de portugueses expulsos das colónias. E, apesar da ironia na escolha das personagens e do cómico de algumas situações, o que nos fica deste romance é uma imagem de Portugal desiludida e dolorida. Tudo parece ter acontecido em vão. E o que resta de tantas viagens, descobertas, partidas, naufrágios, epopeias e poetas é um grupo de tuberculosos que sentados numa praia, olham o mar e esperam que dele surja a salvação. Nesse tempo o Fado ainda não era Património. Nem nós tínhamos sido assim “acordados”. Serenamente, AO 18 de Dezembro

terça-feira, dezembro 04, 2012

A vaquinha e o burrinho

Há dias o papa Bento XVI anunciou ao mundo, no seu mais recente livro “A infância de Jesus” que não havia animais (a vaca e o burro) no local onde nasceu Jesus Cristo. O mundo – apesar de estupefacto – ironizou o mais que pôde sobre o assunto. Pois é claro. O que é que isso interessa? Aos milhares de pessoas que vivem em países em guerra, aos outros tantos que têm fome e a todos os que procuram paz e tranquilidade para as suas vidas? Não interessa nada. Mas o Papa não deixou de se preocupar com o assunto. E de fazer com que essa sua “revelação” eclodisse por toda a comunicação social mundial, como se um segredo guardado a sete chaves fosse agora posto a claro para “salvação das almas”. A mim faz-me pouca ou nenhuma diferença se tinha animais, ou se não tinha animais, se eram burros, vacas, gatos ou galinhas, embora confesse que quando penso nisso cresça em mim um misto de revolta e algum espanto: afinal o que quer dizer o Papa com esta revelação? Que não é digno de Jesus Cristo ter nascido num estábulo? Que por ser Jesus Cristo não podia haver lá animais e que a pena foi a Virgem Maria não poder ter sido assistida numa maternidade? Não me “soa” bem que num momento de tantas dificuldades para todos, em todo o mundo, a grande preocupação do Papa seja fazer esta revelação e dois ou três dias depois anunciar que vai criar conta no twitter. A minha luta é outra. Quero que as crianças que nascem na quadra de Natal e em todas as outras alturas dos anos tenham condições para viver em segurança, tenham sapatos para a chuva para ir à escola, roupa quente para não passarem frio, muita brincadeira, pai e mãe, ou só pai ou só mãe, avô e/ou avó, dinheiro para comprar um gelado, oportunidade para se sujarem de chocolate e que, pelo menos uma vez na vida, chorem de felicidade. Quero isto. E quero outras coisas que não cabem nesta página. Que tenham sopa quente e brinquem com as letras de massa ao jantar, que façam birras de quando em vez, aprendam, estudem, tenham bons médicos para tratar as suas doenças e se algumas tiverem que nascer numa casa que tenha burrinhos e vaquinhas, pois nasçam nessa casa que não lhes há-de fazer mal nenhum. Pior é serem abandonadas nas maternidades e noutros lugares. O Menino Jesus não foi abandonado. A minha luta é terrena. De pés no chão. Eu quero que os meninos do mundo inteiro tenham estrelas, que não sejam apanhados de repente por balas perdidas e mortos, não sejam raptados, nasçam. Que nasçam meninos. Que não haja mães que tenham que interromper as gravidezes ou percam os seus filhos. Para que todos, todos os meninos possam ter colo de alguém. E todas, todas as mães (e pais) possam ver os seus filhos crescer. Traduzido em 9 línguas, à venda em 50 países, “A infância de Jesus” é um livro que eu não vou comprar. Muito menos ler. "Serenamente", Açoriano Oriental de hoje