sexta-feira, março 31, 2006

O Queixobiqueira

Nem em Las Hurdes se encontram os anões que diminuem por aqui a olhos vistos.
Aqui, se tiramos um átimo os olhos do anão,
ao pô-los novamente nele
já temos que ir mais abaixo: o anão está queixobiqueira

Embora queixobiqueira o anão daqui tenta agigantar-se
relativamente ao anão que está mais ao pé.
Para tanto, o queixobiqueira trepa à árvore genealógica
e põe-se lá de cima a atirar crânios de antepassados
sobre quem passa, se demora ou diminui.
E isto é só um exemplo.
O queixobiqueira usa de varíadissimos recursos nas suas tentativas de agigantamento.

Um deles:
Levanta o mento da biqueira, cospe nela, baixa o mento
e enquanto parece dizer que não com a cabeça,
puxa com a barba dura o brilho à biqueira.
Considera-se, então, que esse queixobiqueira,
relativamente ao
ao queixobiqueira que, na circunstância,
não cuspiu para brilhar na biqueira
se agigantou.
Etc.Etc.

Se você, o de talhe normal, é suficientemente hábil
para por um queixobiqueira ao seu serviço,
nunca mais terá de abaixar-se
para apanhar as miúdas coisas
que uma pessoa deixa cair.
Mas não esqueça a regra: passear com alguma frequência o queixobiqueira
empoleirado no seu ombro.
Os olhos dele brilharão mais que a biqueira.


Alexandre O´Neill

quinta-feira, março 30, 2006

Croniqueta XVI ou a Fífia é uma madame ou sai uma Fífia no feminino



A Fífia é, à moda das novelas brasileiras, uma dondoca, à qual falta, para a riqueza do quadro, o cão grande a passeá-la no calçadão e ela de fato de treino apertado, vermelho de riscas brancas, com o casaco amarrado à cintura e uma T-Shirt a dizer: Kiss me. A Fífia é mulher de aparências. Apanhamo-la em marcha, aos Domingos de manhã, no Shopping, com um monte de jornais debaixo do braço, as calças de ganga fora de moda, afuniladas, tapando os tornozelos grossos, que ela tem e esconde.
Mas, no Carnaval, entre bailes e bailaricos, lá estavam eles gordos e roxos, porque apertados pela sandália, debaixo das meias, a brilhar. Luzídios.
A Fífia não lê e há até quem diga que só compra um jornal, porque o resto do maço são revistas do tipo das "Gentes" e "Vips", para as quais uma Fífia como esta tem que estar sempre atenta. Ver bem as caras das figuras reais, decorar os estilos das madames do continente, os estilistas e as casas dos famosos.
A Fífia gostava de participar no Circo das Celebridades e, no lugar do José Castelo-Branco ser ela a artista da sensação; ter as pessoas a falar dela, do lindo aspecto dela, das gargalhadas que faz as famílias silvas deste país dar, quando, sentada num elefante, qual rajá, ela aparecesse na Televisão nacional. (Nunca se sabe, se daqui a uns dias, não a veremos dependurada num elefante branco.) Estrela das televisões nacionais. Um sonho (ou não!). A Fífia não é mulher de certezas, mas de suspeições. Suspeita disto e daquilo; fala alto; esbraceja e, se irritada, treme da voz, como se fosse uma picadora. Mas não pica. Nem belisca.
Não lê livros. Lê os resumos na Internet nas lojas online da Bertrand e da Fnac. Na estante, a colecção do Reader´s Digest, oferta do faqueiro, que comprou na tabacaria; mais dois ou três livros do tipo: "Saiba como pode ser famosa" ou, então, " 1001 ideias para a casa".
Mulher para a frente, a Fífia recusa ajudas de alguém, mesmo quando se lhe rebenta um cano, menos prevenido e a água a alaga, além dos tornozelos (o que nela é uma vantagem!). A Fífia parece uma vassoura de arame; uma espécie de candeeiro, cuja faísca das luzes, quase a morrer, a deixam num estado de nervoso-patético; trocando o seu passo e o dos outros. Casada, mas independente. Muito independente e fazendo questão de o repetir mais de duas vezes por dia, a nossa Fífia, feminino do Fífia, não cozinha. Não tem tempo. Não corta a relva. É trabalho de homem. Não criou os filhos. Teve amas. A Fífia é mulher de estatuto. Porém, vive admirada, porque, ao contrário das outras mulheres do seu estatuto, não aparece tantas vezes nas revistas, dando beijos nas crianças e abraços nos velhinhos; passeando, líricamente, à beira da lagoa das Sete Cidades.
Nunca teve a alegria de se ver nas capas das revistas vestindo o vestido mais caro que comprou; usando o penteado mais parecido com o da Lili Caneças, de quem é admiradora incondicional; ou então calçando aquele sapatinho, último modelo da Feira de Carcavelos ou do Relógio.
A Fífia sofre do síndrome de superioridade. Para além disso, está quase sempre completamente fora dos acontecimentos e ainda não conseguiu perceber o que querem dizer as indicações protocolares: traje de passeio; traje de gala ou traje de soirée. Tudo demasiado complicado. Daí que apareça variadíssimas vezes com as mesmas roupas em várias ocasiões para as quais é convidada; como se em todas elas, o traje fosse o de gala.
Virá daí a forma do tornozelo? Não sei.
A Fífia não escreve, dita. Não lê, resume. Não ouve nem escuta, finge e adora mandar nos homens. Sente-se, não menor, não igual, mas superior. Muito melhor. Então não se vê pelo arranjo da popa, que a caracteriza?
A Fífia não fala, palra. A Fífia não ensaia, decora; não se comove, choraminga; não se analisa, convence-se; não se procura, diz ter nascido em si própria. Orgulhosa. Mandona. Egoísta. A Fífia é como um balde de pouca areia para fazer castelos. Faltam-lhe as pás; as conchas e o sorriso de menina, (que podia aprender com os outros), mas que ainda nunca mostrou...

quarta-feira, março 29, 2006

terça-feira, março 28, 2006

Croniqueta XV ou o Fífia quer ser Bernardim para o resto da sua vida

Embrulhado no seu perfume chinês, que por ser mais barato, passa depressa, o Fífia, armado em duque francês, recolhe sorrisos nas ruas, enquanto passa, qual lebre, por cima de lume a arder. Anda enamorado; veste cores claras, porque se o anunciar da Primavera, o brinda todas as manhãs com o cantar dos rouxinóis, por detrás da sua casa, bem pode ser que uma “menina e moça”, faça dele Bernardim para o resto da sua vida…
E a sê-lo quer ser de cor clara como as manhãs da estação. Nas ruas, assobia canções de amor brasileiras, ensaiando palavras amorosas para, assim que lhe aparecer a moça, se lhe estender aos pés declamando Roberto Carlos, em versão fífalhada, como só ele sabe fazer. Dobrado sobre os joelhos, tal como aprendeu nas aulas de ballet, na cave da tia Lurdes, o nosso Fífia parece um ramo de cravos murchos, passados que são 10 meses de estarem sempre enfiados no mesmo vaso. Secos. Mas não dá por isso. De flor na lapela, festejando “a liberdade dos pombos”, como diz; o nosso Fífia parece um gira-discos com as colunas viradas para fora, à mostra, como as suas duas orelhas de duende em versão xl. Porém, de nada lhe servem as orelhas grandes. Não voa, apesar do seu desejo de grandes voos e do apelido que arrasta desde a escola infantil; pior, ainda, não ouve quase nada do que lhe dizem os seus colegas, porque, além da dureza de ouvido, o nosso Fífia sofre de um mal terrível: é muito armado. Convencido das suas estratégias de engate, apelidando as meninas e as moças que encontra de “doces bailarinas do obscuro” o que as deixa de cabelos em pé, como se a determinado momento, se tivessem tornado personagens de Baudelaire, Flores do Mal. Jamais se aperceberá de que a máquina que diz que é, nestas coisas do engate, não passa de tristes figuras que faz, como se fosse, uma esponja amarela daquelas que enxugam a água que se derrama; a que fica de fora da pia.
O Fífia é muito isto; um gastador excessivo de líquidos, não lhes conhece as correntes; nunca ouviu falar de amor; mas mesmo assim, procura agir, qual D.Juan versão de 3º mundo; lendo nas páginas da Internet brasileiras, frases do tipo: Você é um universo. Di-las no seu sotaque brasileiro, que aprendeu nas telenovelas; no tempo em que as via, porque, agora, diz: "só vê os noticiários e as passagens de moda para aprender a falar e a andar". Quando, num Sábado à noite, o encontramos numa discoteca, de colar ao peito (daqueles pretos com um dente a imitar osso de baleia) a ver-se, entre a camisa de dragões a cuspir fogo, é triste ver as pobres meninas e moças que o olham estupefactas com tamanha falta de sensibilidade. Além do mais, não se pode parar muito tempo ao pé dele. Ele é todo perfume chinês; mal penteado, com conversas que não "lembram ao menino jesus"; fala em verso, algumas vezes, arrastando as sílabas, como se não sentisse as palavras que diz e, ao invés, fosse uma espécie de gravador automático. O Fífia não aprende. Nunca mais. Começo a ter sérias dúvidas de que alguma vez da sua esbelta boquinha de pinguim sairá qualquer coisa diferente das que tenho ouvido dizer que diz.
Agora, anda a ler Camões; lembrou-lhe que talvez na ilha dos Amores, quando eles cantam pela décima vez (o canto X), talvez aí, entre as Ninfas e os heróis, como ele, esteja a chave para descobrir se o assobio dos rouxinóis, que lhe cantam todos dias de manhã, desde o início do mês de Março, não lhe estará a anunciar uma ilha de amor com uma menina e moça...Para que, enfim, aclamado pelos seus fiéis seguidores (os rouxinóis!) possa enfim descansar e ser Bernardim toda a vida, já que ribeiro de asneiras, já é por natureza, desde o dia em que nasceu...

segunda-feira, março 27, 2006

Citação (importante)

És tu quem perseguimos pelos lábios
e tens em equilíbrio os seres e o tempo
És tu quem está nos começos do mar
e as nossas palavras vão molhar-te os pés
Tu tens na tua mão as rédeas dos caminhos
descem do teu olhar as mais nobres cidades
onde nasceram os primeiros homens
e onde os últimos desejarão talvez morrer

Tu és maior que esta alegria de haver rios
e árvores ou ruas donde serem vistos
Por ti é que aceitamos a manhã
sacrificada aos vidros das janelas
aceitamos por ti o sol ou a neblina
que faz dos candeeiros sentinelas
É para ti que os pensamentos se orientam
e se dirigem os passos transviados
e o vento que nos veste nas esquinas


És sempre como aquele que encontramos
diariamente pela rua fora
e a pouco e pouco vemos onde mora
Só tu é que nos faltas quando reparamos
que os papéis nos vão envelhecendo
e os dias um por um morrendo em nossas mãos
És tu que vens com todos os versos
És tu quem pressentimos na chuva adivinhada
quando os olhos ainda se nos fecham
embora o sono nunca mais seja possível
É tua a face oposta a todas as manhãs
onde o tempo levanta ombros de espuma
que deixam fundas rugas pelas faces


Os céus contam contigo é para teu repouso
a terra combalida e sem caminhos
Ser indecomponível teu corpo foi maior
que vítimas e oblações. Quando tu vens
a solidão cai leve como a flor do lírio
e as aves nos pauis levantam voo
e há orvalho em teus primeiros pés


Não assistisses tu a esta nossa vida
caíssem-nos os gestos ou quebrados ou dispersos
e nenhum rosto decisivo um dia fecharia
todas as palavras com que dissemos os versos


Ruy Belo, Vestigia Dei

sábado, março 25, 2006

I came to buy a smile



I Came to buy a smile -- today --
But just a single smile --
The smallest one upon your face
Will suit me just as well --
The one that no one else would miss
It shone so very small --
I'm pleading at the "counter" -- sir --
Could you afford to sell --
I've Diamonds -- on my fingers --
You know what Diamonds are?
I've Rubies -- live the Evening Blood --
And Topaz -- like the star!
'Twould be "a Bargain" for a Jew!
Say -- may I have it -- Sir?


Emily Dickinson

Teorias de Sexta à noite ou notas para não perder o pé

“Dentro de cada língua no que toca a esta nova especificidade, que é a de um som linguístico, há-de dominar, necessariamente um princípio analógico”
Humboldt

À cultura (do alemão Kultur, como civilização) está subjacente um princípio básico de grande unidade; o mesmo será dizer que a Cultura deve desenvolver o Meio através de diferentes métodos. Certo é que a maneira e a forma como pensamos influencia determinantemente as nossas acções.
A Cultura e a Língua dos Povos são duas fontes de saber que se complementam e não chocam; nem entram em contradição. Pelo contrário, são complementares e indissociáveis.
Não é à toa que a linguagem é tida como uma “testemunha antiga” no tribunal da Razão (em letra maiúscula como a kantiana); transportando em si mesma vestígios da evolução do homem; factores identificadores do percurso humano.
Se nos debruçarmos sobre o pensamento e a linguagem de um Povo (Humboldt) uni-los-emos com um fio condutor permanente: teremos a essência do pensamento cuja raiz se encontra na reflexão. Quando reflectimos, o espírito pára a sua "máquina de fazer coisas" e aprendemos a unidade do que somos; tornámo-nos únicos, articulamos ideias; fazemos “jogos de cabeça” e adequamos o que pensamos às mais variadas situações; criamos labirintos; abrimos e fechamos portas (com ou sem prémio).
É uma não verdade dizer-se que os pensamentos estão dissociados da sensibilidade. Pelo contrário, a linguagem começa com a reflexão. Evolui com a consciência e aparece em palavra. Podemos chamá-la orientação. Orientamo-nos com a linguagem que usamos; procurando à nossa volta “sinais”, aos quais nos possamos agarrar.
Os sentidos provocam a alma; fazem-na acordar da inércia do silêncio torturado por palavras de luto; palavras do silêncio. As pensadas.
As línguas e os falares têm entre si, também, uma relação de inter-dependência; às línguas está inerente um objectivo de “alma de nação”, que se traduz em clima, organização política, religião, usos e costumes, por exemplo. Pensar-se que a linguagem não está associada ao modo de ser das pessoas; à sua característica de maior intensidade identitária é, quanto a mim, outra não verdade. É aqui, na linguagem, que está impresso um povo e tudo o que a ele diz respeito; desde o seu princípio até ao seu fim. Isto porque nem a linguagem nem por inerência a identidade cultural de um povo são um conceito estagnado. Muito pelo contrário.

Depois de reler Über denken und sprechen (Sobre o Pensamento e a Linguagem)de W.Humboldt a 5 de Janeiro de 2006.

quinta-feira, março 23, 2006

Manifesto a três pancadas

Quero morrer dos meus passos
Como docemente morre a pancada dos saltos.
As ágeis mãozinhas do Espanto, entrecortado, por duas sombras
De espécie ligeira e fresca como as manhãs de Primavera
De onde partíamos os dois, são encantamentos. Na gíria: pândegas.
Não mais morrer a solo sem consigo, contigo ou comigo.
Não mais violas a morrer na areia; não mais esta garganta a arder de inferno
Como se no Verão fôssemos, unos, indivisíveis e quase nitidamente amantes.
As esferas circundantes de um sonho são como os pássaros enjaulados nas mãozinhas do Espanto; surpresos, atacados por cordas de nylon, que o espírito ata às coisas vivas.

Quero morrer dos meus passos, deixar-me cair entre os teus dedos;
Como a adivinha de um conto infantil, moralmente digno das esperas e das partidas
Em aviões cheios de gente para ilhas que nunca mais acabam e que são de chocolate;
Quero morrer dos meus passos como docemente, morreste, quando as janelas das casas estavam fechadas, e por dentro havia a luz dos olhos que, quando dormem, ficam da cor do néon.
As vozes são passadeiras, arquitecturas bicadas; palavras que, ao vento norte, numa noite, crua e verdadeira, morrem dos nossos passos; com os pés calcados do barro, que nas ilhas a fortuna feita sorte, fez nascer nos nossos lábios.
Sangra-me a carne em pedaços e leva à ceia das sete damas, onde o morto, por desmazelo, não possui ninguém que o possa carpir.

Leva-me nos braços; carrega-me, como quando, saltando entre as poças da água me feri, de mimo e beijos, nas pontas dos dedos das mãos.
Quero morrer dos meus passos; deixar de ouvi-los no seu mistério oco de barulho feio e grosso; na chinela cruzada, que comprei para o Natal.
Deixa-me morrer em descanso; deixa-me, que ao tempo do meu tempo não resta mais minuto, hora ou dia, em que não pense de como, ou que como, ou onde, ou quem sabe talvez nesta vida a onomatopeia pudesse entrar seguida da interjeição e caísse, pimba, morta, descalça como a Lianor pela verdura dos versos provençais.
Ah! Deixa-me morrer morta! Deixa-me nos cânticos da aurora, põe-me Mozart; canta-me tudo de novo; as primeiras músicas como o principio das letras na escola no quadro preto e diz-me das vogais e da praia, da avó, da toalha.

Ensina-me a escrever a letra h; a letra m, ensina-me o meu nome; põe-mo na cartolina, dobrada à minha frente, um nome grande, enorme; um nome que soletrado parecia meu e tinha um eco; uma melodia…uma transformação de qualquer coisa menos ácida; menos triste; menos apagada; menos isto ou aquilo.
Dá-me Poesia. Enche-me as veias desta Metáfora que embala o sono dos poetas; dá-me esta palavra em Latim; os versos todos dentro uns dos outros, como se as passagens de cada um, linha a linha, fossem de fogo, a arder e a ver-se…
Chega de disfarces; de rimas que morrem no começo da página; de folhas não numeradas e de ares e de mares e de pessoas a rir para o primeiro clique da armazenagem de catálogo.

Quero morrer dos meus passos. Deixá-los como herança a quem os quiser comprar; não para usar, mas para fechar nas curvas imaginárias de um poema que nunca tive coragem de reescrever…


Maria Amaro

Serenamente



Em 1986, eu tinha 11 anos.
Aprendi a conjugar o verbo colorir...

quarta-feira, março 22, 2006

Aniversário



Parabéns à TUCA (atrasados)!

Croniqueta XIV ou o Fífia é uma palavra esquecida ou Ode ao Fífia




No dia Mundial da Poesia,
O Fífia foi ao Hospital
Porque a alma lhe doía,
Porque tinha em si um mal.
Uma dor nele morava
Uma aflição lhe batia
Mas quanto mais ele tentava
Menos lhe saía a Poesia.
Leu Bocage, Antero, Camões
Chegou até a ler Florbela
Mas, nem poemas…nem canções
Nada. Só lhe valia a goela!
Nosso Fífia é bom cantor,
Gostava de ser artista
Aparecer como um actor
Numa capa de revista.
E falar pró jornalista
Dos seus jeitos de poeta;
Dizendo em toda a entrevista
Que Fífia rima com Atleta!
Porque as palavras corridas
São como cabelos no vento
Umas ficam ardidas
As outras são do momento.
Já se vê na montra da livraria
De bigode e capachinho
Título: Palavras em Correria.
Da Editora: Caminho.

Bota, Pantufa, Sandália
Ai que inventário calçado.
Ele: Escrevo melhor que a Natália!
Eu: Dêem-me um Fífia calado!


Pensa agora no Nobel da Literatura
Tem a certeza que vai ganhar
Vai treinar a Assinatura;
Depois sentar-se a esperar.
Poetas, como este Fífia amigo;
Há deles como grãos de areia;
Uns vão zangar-se comigo;
Outros ficam de cara feia.
Mas no dia Mundial da Poesia
Que já passou há um quarto de hora
Tinha que falar do Fífia
Antes de me ir embora.
O Fífia não rima com Poesia,
Nem com poemas, nem escritores.
Não rima com o meu dia;
Não rima com os comentadores;
O Fífia é isto e mais nada.
Uma escada subida.
Uma porta fechada.
Uma palavra esquecida...

domingo, março 19, 2006

Dia do Pai

Sem preconceitos

"Os professores de Português ensinam mal ou os alunos aprendem mal? Por que razão a língua portuguesa está a dar tanta dor de cabeça a tanta gente?

Não creio que os professores ensinem mal, o que me parece é que muitos dos textos de apoio para o ensino da língua portuguesa não são os mais adequados à idade dos alunos. Há a tendência para se introduzir os textos clássicos da literatura portuguesa nas aulas de língua portuguesa mas muitas vezes os alunos não têm maturidade para compreenderem esses textos. Muitos desses textos reportam-se a séculos anteriores e estão fora da consciência e da realidade quotidiana dos alunos, o que pode criar um bloqueio ao nível do conhecimento e da compreensão dos conteúdos, o que propicia resistência ao gosto para esse tipo de leituras. Por outro lado, existe um mito no ensino do Português que, sendo a língua que falamos, parte-se do princípio que não é necessário dedicar muito tempo ao estudo das regras gramaticais, porque todos nós temos um conhecimento empírico, sabemos falar e sabemos transmitir as nossas ideias. Deveria apostar-se na divulgação da ideia de que é necessário também desenvolver um esforço no sentido de compreensão das regras e aplicá-las.

Como é que isso se pode fazer?

É preciso fomentar o gosto pela leitura mas não apenas pela leitura de textos canónicos pois ter de ler “Os Lusíadas, “Os Maias” ou Gil Vicente pode ser contra produtivo. Porque não ir para registos diferentes?

Existem actualmente obras que cativem os mais novos para a leitura e para o gosto pela língua portuguesa?

Sem dúvida. Acho que cada vez mais existe uma maior sensibilidade para a escrita e temos visto aparecer literatura infantil nomeadamente internacional, que tem conseguido captar um universo de leitores nas faixas etárias mais novas. O Harry Potter tem sido um fenómeno de popularidade.

É bom aconselhar Harry Potter como leitura?

Acho que sim. Mas se um adolescente se assusta com a extensão do livro também não deve ser obrigado a lê-lo só porque está na moda. É importante salvaguardar essa questão: Não devemos ser obrigados a gostar e devemos diversificar o tipo de textos que oferecemos.

(...)
Sei que defende a ideia que é necessário que a aprendizagem do Português não acabe no ensino secundário…

Sim, acho que deveria atravessar todos os programas de licenciatura de todas as licenciaturas. Deve ser uma presença permanente na formação académica e universitária de qualquer estudante porque encontramos pessoas licenciadas e até com muito valor nas chamadas ciências aplicadas ou naturais, que poderiam ter coisas interessantes para dizer em termos de divulgação científica das áreas da sua formação mas que não conseguem transmitir essas ideias porque têm lacunas muito acentuadas ao nível da expressão escrita. Há o caso de um físico português já com livros publicados que muito me desiludiu quando o li. Era tão mau que um dos erros era a confusão entre o “à” e “há” de “haver”. (...) A língua portuguesa devia ser ministrada em todas as licenciaturas de forma continuada, até porque qualquer que seja a formação há que desenvolver a competência comunicativa.
(...)


O bom e correcto uso da língua portuguesa é apenas uma das muitas motivações de Leonor Sampaio
Excerto de entrevista hoje no Açoriano Oriental

sábado, março 18, 2006

O sal da Terra

"Desconfia daqueles que veneram. Expulsa de tua soleira os devotos. Não admitas a teu convívio os lábios reverenciais. Com as giestas da última primavera (eram abundantes, lembras-te?), arma a vassoura que trarás sempre contigo. Busca o desprezo, de ti e das coisas, com a mesma infinda minúcia com que outros apenas se buscam, na composição confusa de seus ecos.

Tu, porém, se é a poesia que procuras, cultiva a indiferença absoluta pela poesia. Não te deslumbre a cantilena dos oficiais, nem penses nunca que encontraste a poesia no exaltado martelar dos artífices. Afasta-te dos que repetem os nomes do poema como avulsos consolos, e não como íngremes entradas que a própria montanha estabelece. A poesia passa ao largo de tudo: é um mendigo que chegou a más horas e partiu antes de todos; é um grito que nos sobressalta o sono e não sabemos se irrompeu do mundo exterior ou de dentro dos próprios sonhos; é uma embarcação que pensas ter vislumbrado apenas na névoa e da qual nem coragem tens de falar. Em caso algum te deixes tentar pelos fáceis modos da vizinhança quando a distância é o nó irredutível da comunhão verdadeira."


José Tolentino de Mendonça
Público, Domingo 26 de Junho de 2005

PORQUE



Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.



Sophia de M.B. Andersen

In"Mar Novo"

quinta-feira, março 16, 2006

Croniqueta XIII ou o Fífia é um Beiças de Alfenim de oratória macia



Para GMarinho

Enrugado e crespo, qual casca de noz, o Fífia lembra uma bola de ténis ensopada em água; quando bate, o som é oco e mirra-se como um polvo cujos tentáculos congelados são maiores do que quando cozinhados.
Pequenino como uma batatinha da terra, o Fífia é o orgulho da mãe e do pai (filho é filho), mas a tristeza dos companheiros que, envergonhados, “jogam às Damas”, enquanto ele destila poemas feitos à medida do pulsar do seu próprio orgulho. Escorregadio, qual sabonete molhado, o Fífia cheira a pó da roupa, porque o seu ar esgazeado, quando zangado, lembra um glutão, dos que em pequenina, eu e os meus irmãos procurávamos na pana (alguidar) para apanhar. Quase sempre nos escapavam, porque, imaginativos, os glutões eram como os duendes…
Dos glutões da espuma da minha infância, este Fífia herdou o ar verde e os olhos arregalados, mais nada. A atitude rebelde dos glutões é nele um conjunto sonoro de gritos, já não de espuma pelo ar, mas sim, de baba e lágrimas (de crocodilo), quando, pondo-se de pé, parecendo ainda sentado, exorta os presentes, atirando cognomes e epítetos, como se fossemos todos tolos e ele, porque (julgando-se) democrata e socialmente justo, o único esperto.
Há dias, tive a nítida sensação de que o que ele gostava mesmo era de ser Gil Vicente ou Dante. Talvez Raul Brandão, em El-Rei Junot, porque a “história é dor”. Mas, e aliás, como sempre, quedou na falha do mote para começar e nem Ovídio lembrou. O pano de cena caiu-lhe em cima; ficou enrolado nas cortinas, enquanto os pontos, aflitos, lamentavam tal falta de habilidade. Semítico. O Fífia é uma toalha turca verde alface; um apito de mota do chicharro; depois de 10 apitos, soa a fanhoso e parece quase rebentar; quando grita lembra uma cagarra, na noite, chocalhando
Não desistindo de ser autor de uma peça teatral, sonha-se escritor de autos e transforma a sua pequena ribalta numa coisa parecida com o Auto da Barca do Inferno, só que, como imitação, a dele está cheia de água e dali não escapa uma única personagem que salve a honra do convento (ou deveria dizer da Índia?).
Melhor nome para o Fífia desta croniqueta era o “Beiças de Alfenim”, quase doce, quase amargo; menino da mamã. Enfim, tudo menos elegante e discreto (em ambos os sentidos). Se este fosse o tempo das fogueiras para cobrança de castigos, de certeza lá o veríamos, de tocha em punho…
O Fífia é um caso específico de um homem que até veste bem, mas que, no final, abre a boca e deixa cair a beleza dos fa(c)tos…Mal formado, não mal – educado. (Não lhe conheço o pai e a mãe.)
O Fífia não toma fôlego, arfa; não se inspira; espirra…assusta-se, revira-se na cadeira; impressiona-se, descarta-se e sucumbe na praia…
Aborrecido com a atitude, enjeitado pela maioria dos formados, o Fífia não respira, transpira sempre que tem que usar da palavra. Lança-as às faíscas como dardos, cheias de ideias periclitantes, molhadas em lágrimas que não chegam a ser choradas; próprias das birras, que, como sabemos, se fazem de finos. O nosso Fífia, quase fina, e quando o não pode fazer, por vergonha, tapa os olhos, apoia a mão no queixinho e fala ao telemóvel com a madrinha.
Ainda hão-de me explicar porque raio tal menino Fífia de palavras tão (pretensamente) macias, com gestos tão frágeis, tez alva da neve, arcaboiço quase nenhum, é chefe dos formandos desta fornada? … O facto é que o biquinho mimoso e o rol das penas empalhadas na minha frente lembra uma folhinha triste de árvore, caindo numa tarde outonal, mas que, de súbito, é arrebatada por um sopro de vento, ar fresco de areia, pó e mosca; terminando com um beijo no anel do padrinho, que tomando-o no seu colinho, lhe dá um puxão de orelhas valente.
Nessas alturas, canta-lhe uma canção, que é mais ou menos assim:
O Balão do João já perdeu todo o seu gás
O Padrinho está aqui, acalma-te, oh meu petiz
Vamos a ver se tu cresces e deixas de ser rapaz!
Porque se não o fizeres, quebro o mal pela raiz.
Anda, chora as tuas mágoas
Meu beicinho de alfenim
Deita fora essas águas
Podes confiar em mim.

segunda-feira, março 13, 2006

Bailado de Olga Roriz

Nos melhores momentos, que foram muitos, o bailado de Olga Roriz conseguiu, este sábado à noite, mapear, de uma forma crua e com uma cor e textura de carne viva, muitos dos caminhos, e dos vazios, que estamos condenados a percorrer entre o sexo, a paixão e o amor. Uma “chef de cozinha” que trabalha o menu desde o matar do animal no matadouro até ao servir do vinho à mesa.
Um trabalho, intenso, concentrado, físico, quente, cru, nu e honesto.



Victoria Reynolds

domingo, março 12, 2006

sábado, março 11, 2006

Natália...



"(...)Acode-me um relato de geógrafos arábes que intruiu os navegadores portugueses na demanda dos mistérios do Poente. Li-o ontem num livro de Claude Derven (Les Açores) que um patrício me mandou com um ramo de hortênsias a jeito de boas-vindas:"Diziam que nas extremidades do Ocidente havia uma Ilha encantada que de sete em sete anos se mostrava aos navegadores que sulcavam essas paragens...Era uma Terra coberta de bruma, embalada no dorso das marés, a qual seria um oásis de ventura para quem lhes quebrasse o encanto."
Pergunto-me se as caravelas lusíadas te quebraram o encanto, ó minha ilha das névoas que velam o arcano do Ocidente. Ou, porventura, àqueles que julgaram descobrir-te capitaneando naus cobiçosas do dízimo do teu trigo, da tua cevada e tuas frutas, negaste o segredo que virginalmente guardas no fundo do mar?(...)"


Natália Correia, excerto de "Ponta Delgada, 6 de Setembro de 1975", in Não Percas a Rosa (diário e algo mais de 25/04/1975 a 20/12/1975), Lisboa, Editorial Notícias, 2ª edição, 2003, pp. 287/288.

sexta-feira, março 10, 2006

Citação - Joaquim Pessoa

O piano de cauda das estrelas
tem raízes na música dos lagos.
Amar é a arte da música
num corpo moribundo. Morre-se
de um pequeno átomo de ansiedade e isso
é uma regra do jogo; só assim a morte andará descalça como
uma violeta pelos jardins da noite; só assim
nos restará a morte antes do fim.
O fruto do coração é pouco, semelhante à mágoa.
Olhar é uma página. Percorre-a a consciência de quando
não acontece nada. É preciso duvidar semeando limites
para ser-se ilimitado -- eis quando será legítimo enganar
os deuses. Maior que a montanha é
a gota de orvalho; maior que o sol é o movimento
da sombra. Os pássaros
não acontecem: vivem-se. É tarde
para inscrever o discurso da alegria
nas estruturas do ar?

in O Livro da Noite

(Com Poesia também se aguenta!)

A rir



é que a gente aguenta!

quinta-feira, março 09, 2006

Os bailes de Carnaval no Coliseu



Desde o dia 24 de Fevereiro que todos os dias encontro alguém que invariavelmente me pergunta – Então?! Não foste aos bailes do Coliseu? – ou – Estive com os teus irmãos no baile de sexta-feira! Porque é que não apareceste? – e – Epá! A gente divertiu-se tanto nos bailes de Carnaval! Devias ter vindo – e etc., e etc..
Só queria que ficasse muito clara qual a minha opinião sobre os bailes de Carnaval no Coliseu. Eu acho que aquilo é para a ralé, pequena burguesia, provincianos e principalmente para quem ainda consiga caber no seu smoking…

Bêços d´açucre

"(...)Não nos parece que haja falta de oxigénio nos Açores, a oposição é que, voluntariamente inspira monóxido de carbono e por isso mesmo sofre de asma… De pieira, como diz o povo."


D´Arrejeite

Saúdo a chegada de H.Galante à Blogolândia Insular

Decisão

Passava a vida a levar e a buscar
pessoas ao aeroporto. Até que um dia
decidiu ir.


Nuno Costa Santos, in Os Dias não estão para isso, Livramento, 2005, pp.28

quarta-feira, março 08, 2006

Croniqueta XII ou o Fífia é uma Sopa da Avó

O Fífia é uma bomba sem detonador, que cai na água e não faz espuma; uma escova sem pêlo, um carro sem acelerador, cuja única função é servir de vigia para as brincadeiras dos garotos. O Fífia é um ladrão do meu tempo descontraído, um esgar que observo, um traço, um manifesto, um cigarro fumado até ao filtro, uma marca rafeira de roupas, que a tia não usa porque é foleiro, mas a vizinha compra porque é mais barato. O Fífia é um ser animado pelas palmas dos outros. Sorri, aplaude e grita ao milímetro, como um reflexo do que os outros fazem. Chora para agradar tão facilmente como canta ou aplaude a pior cena de Teatro. O Fífia é um pano de cena para cima e para baixo, tapando mistérios, ocultando buracos, escondendo armas, às quais não tem acesso, não sabe do calibre, mas aguenta as provas e, se preciso, ainda se assume culpado, mesmo não o sendo. O nosso Fífia tem cara de óculos, cabeça de esferovite e um ar de feijão verde cheio. O nosso Fífia fechado numa caixa e chocalhado não faria barulho para não acordar os vizinhos. Gosta de passar despercebido, diz, mas não passa. Sobretudo, quando anda por aí de laçarote, cabelo no ar e fato amarelo. Diz ele, que está experimentando as fatiotas para o Carnaval de 2006, que vai ter muito mais camiões na avenida e ele próprio vai num. Mas não vai querer uma T-Shirt a dizer Anima. Para si prefere uma que diga: Soul. Assim como assim, se a batalha das Limas é cartaz turístico, quanto mais não vale uma palavra em inglês? Uma palavra que os estrangeiros, todos pingados, da cabeça aos pés, apontem e gritem: Soul! E tenham esperança. O Fífia pensa-se alento das pessoas desesperadas, guia dos infelizes, por isso, todos os domingos, na missa das 18 horas, entoa cânticos da sua autoria, à porta da igreja, para testar a sua voz e aquecer os presentes, que irritados, o mandam calar.
Vai, agora, concorrer para os Jogos florais. Fingir que se chama Anacleto e que tem 14 anos e concorrer com uma rima estúpida a que dá o título de 1º neto. Assim:
O Anacleto
É o primeiro neto
Do Felizberto

E está fofo com tal acontecimento. Parece uma chalupa à deriva no mau tempo no canal, agarrada pelas cordas dos braços; parece uma esferovite em forma de bolacha, quando desanca na mãe, porque esta lhe tenta explicar o que é uma sextilha e ele grita, dizendo que sexta ilha pode muito bem ser Graciosa, mas que não rima com 1º neto. O Fífia é um kalkito; um Epá com gama desfeita no fundo; um guarda-sol de varas partidas; uma bola de futebol vazia, um vendedor de gelados sem os nossos preferidos. O Fífia não tem morada, tem estada; de um lado ao outro da rua, passa por todas as vivendas, aonde cães de pêlo escovado e gancho no cabelo passeiam nos colos das donas, que hoje, estão particularmente, felizes: é dia da mulher. Os maridos vão buscar os filhos, levá-los ao judo e ao futebol, enquanto elas, de rosa na lapela, escutam conferências sobre as suas fraquezas.
Sabendo que a mãe não é dessas coisas, o Fífia já pensou. Vai levar-lhe uma Sopa da Avó. Um dia por ano, ela tem direito a sonhar.Comeremos todos. E ela até vai pensar que a mesa está cheia de netos, sorri pensativo, enquanto dispensa uma rosa, gentilmente oferecida, por um Homem de cesta no braço.

terça-feira, março 07, 2006

VISITA À CASA DE TATÁ

A casa de Tatá é um silêncio perto da igreja.
Silêncio de lençóis engomados
para sua única pessoa.
A viuvez tão antiga que virou de nascença
derrama brancura em tudo.
O presépio de Tatá emerge de Belém como flor
cheirando a cânfora e alfazema.
Na ordem dos anjos e animais, a ordem estrita
de Deus.
O melhor da casa é a arca,
o melhor da arca, suspiros
feitos da brancura mesma de Tatá,
brancura surda.

Carlos Drumond de Andrade

segunda-feira, março 06, 2006

Croniqueta XI ou o Fífia queria ser lavado numa selha

Fífia que é Fífia come de talheres no ar, gesticula de dedo espetado e usa marrafa a meio. Um luxo. Engomado até aos olhos, que é como quem diz, de cabelo esticado à dandy e sapato pontiagudo, às vezes preto e branco, outras vezes, bico de pato com atilhos de ponta envernizada à duque. As gravatas são compridas, compradas em série nas Feiras de Roupa em Santarém ou Odivelas, bem como as calças de ganga que, com defeito, afunilam e encurtam deixando antever a meia branca e a raquette de ténis a azul.
Agora o Fífia anda a ler a revista Visão, de onde tira imensas ideias para o seu artigo semanal no jornal. Aliás, a Visão e a Focus são as suas duas fontes de inspiração além da fotografia que ostenta, por cima da sua cama, onde se pode ver a rir, a Rainha Santa Isabel. O Fífia queria ser rei, para ter os pés lavados e perfumados pelas mãos das aias…Queria ser rei para ter uma coroa e usá-la à banda como os actores dos filmes. Uma coroa de oiro e um pássaro ao ombro fazia dele Rei. Rei. Ah! E o manto. Vermelho como o do Super-Homem, felpudo como os gatos do seu vizinho. Olha para eles e pensa: manto!
Para a semana tem um baptizado e de certeza vão estar lá imensas amigas da sobrinha. Pode que haja uma que queira ser rainha, pensa todas as manhãs, enquanto cofia o bigode imaginário e ajeita o cabelo para fingir que põe a coroa. Anda por aí todo espigado e direito como se isso lhe desse formato de rei. O Fífia é um desinformado; uma gaveta de espuma; um saco de asa rasgado; um pato que grasna baixinho e, na banheira, perde a bravura, quando grita, em dó menor, a dor da água a ferver!...
Queria lavar-se numa selha e falar à janela, não com o padeiro, mas sim para uma multidão de povo. Homens, mulheres e crianças descalças ouvindo a sua voz de pau oco, contemplando histórias não vividas de cavaleiros…
O Fífia é uma anedota; das que não são para rir, mas que empalham o nosso raciocínio de tão estúpidas que são. O Fífia é uma aventura por escrever; um inquérito que peca por não ter perguntas; um carro avariado e rebocado.
O Fífia é um reboque. Um gancho…qualquer coisa entre os dois…a pecar na roda do carro que morre a cada empurrão…
O Fífia é uma vassoura sem arame. O Fífia é a forma de dizer que talvez...

Blog Faialense

Feito nas Américas.

domingo, março 05, 2006

Citação

"(...) Que é pois necessário para readquirirmos o nosso lugar na civilização? para entrarmos outra vez na comunhão da Europa culta? É necessário um esforço viril, um esforço supremo: quebrar resolutamente com o passado. Respeitemos a memória dos nossos avós: memoremos piedosamente os actos deles; mas não os imitemos. (...)"


Antero de Quental, Causas da decadência dos povos peninsulares, ulmeiro, Lisboa, 8ªedição,s.d.,pp.67.

sexta-feira, março 03, 2006

quinta-feira, março 02, 2006

Ódio de pai

O que é que eu estou aqui a fazer, sentado ao lado de um cadáver, dobrado sobre mim mesmo, com a cabeça, a minha, entre as mãos. Estou aqui para testemunhar o enterro da semente dos meus ódios, que já deu flor murcha há muito tempo. Estou perante o corpo do meu pai que, agora e sempre, se me apresenta sem alma nem coração.
Lembro-me perfeitamente como, já com 4 ou 5 anos, eu o odiava e como ele berrava com a minha mãe e a duchava com perdigotos. Ás vezes concentrava-me em seguir os perdigotos em contra-luz do candeeiro da cozinha, para não olhar nos olhos de medo da minha mãe. A valentia da minha mãe é que só chorava depois de ele sair disparado pela porta fora, aí eu abraçava-a e não pensava em nada. Nessa altura o meu ódio passava depressa e acreditava que éramos felizes. Pelos meus 10 anos a raiva do meu pai passou a ter um segundo acto que incluía empurrões e abananços, e por fim um terceiro acto que acabava sempre com um múltiplo par de bofetadas. De empurrão em empurrão, de bofetada em bofetada, deixei de abraçar a minha mãe, deixei de acreditar que éramos felizes e o ódio levava mais e mais tempo a passar até que se tornou constante, devorador. E é ainda esse ódio que sinto por este corpo inofensivo que jaz aqui a centímetros das minhas mãos. E tremo de ódio por mim mesmo porque sei que o meu filho de 14 anos, sentado ali ao fundo da ermida, me odeia, cada vez por períodos mais longos, senão já permanentemente. Sim, eu bato na minha mulher. Ela leva-me a um ponto em que não me controlo, como quem queima uma calda de açúcar e depois por vontade própria não desliga o lume e me deixa endurecer, escurecer, queimar por dentro e por fora e eu, por fim, estalo… Se pelo menos ela me deixasse, se fosse embora… Ai que ódio, aqui, a centímetros das minhas mãos e ali, tão perto, ao fundo da ermida…

quarta-feira, março 01, 2006

Carta ou Canção para um Poeta Ausente






Querido Emanuel,

Desculpa o afectuoso [querido]. Porém, estou certa, que não será ele, o causador da tua zanga, pior seria se como escreveu Michel Foucault eu, ao longo deste texto, repetisse “ a afirmação oca de que o autor desapareceu”, (O que é um autor? p.41). Isso já todos sabemos. Então como te escreverei diferente dos que já te escreveram? Já tantos falaram de ti. Já tantos te teceram loas e tão bonitas, que eu não sei se consigo, mas vou tentar… Quero escrever-te para que te leiam os leitores deste suplemento. Não quero traçar-te em metáforas, sublinhar-te termos, encher-te de quês e porquês; sentar-te no tempo, esticar-te todo, esperar-te ao canto, fazer-te uma finta e depois, deixar-te cair, a ver se entras, direitinho, na minha interpretação. No final, encher-te de predicados e adjectivos e dizer que foste o maior poeta que o mundo viu nascer. Não. Não quero nada disso. Se assim fosse, preferia que esta página ficasse em branco…
Então, deixa-me lembrar-lhes o teu sorriso. Um sorriso bonito. Apareces aqui por casa em fotografias de jornais e revistas que o pai e a mãe guardam. Pareces um navio.
Grande, enorme, atravessando o mar na “hora da nossa morte/na hora da nossa vida” (Tristes navios que passam, p.122). Os poetas, como tu [cá vem o tu atrevido] têm essa condição de permanência e é, talvez por isso, não te tendo conhecido pessoalmente, que me sinto à vontade para te tratar assim.
Querido Emanuel. Meu amigo ou irmão, se entendermos que esta condição de sermos dos Açores, sem que isso possa implicar, um umbiguismo bacoco e envergonhado, mas antes nos faça irmãos de sangue: "Sigamos a lição/Destas flores de lume/Que valem pelo que são/ e não por um perfume." (Dálias, p.62).
Assim estás tu, valendo pelo que és. Aqui, na minha secretária, do lado direito, em 121 Poemas Escolhidos, dizes: “Somos herdeiros dos quatro ventos/Sem uma vela para lhes dar/Temos amarras e temos lenços/Num cais de pedra para acenar ( Náufragos Tranquilos, p. 131). Somos não somos? Sempre tive essa ideia de que mesmo que façamos parte dessa outra história que me dizes aqui: “ (…) absoluto obsoleto medo filho por vir/o loiro infante o instante/ todo o alcácer – quibir” (A Palavra o Açoite, p. 124) somos Náufragos Tranquilos. Habituados ao “rombo aberto no nevoeiro secular” ( Náufragos Tranquilos, p 131).
Mas, Emanuel, vou tentar explicar aos possíveis leitores deste suplemento o que é que este livro tem de especial. Começa por ter 121 poemas escolhidos. É castanho e foi editado pela Salamandra. Os 121 poemas foram escolhidos por ti. É um livro de amor e amizade com tudo dentro, direi eu, esperando que concordes comigo. Tem letras dentro. Escolhidas para as dedicatórias e para as sombras, para as raparigas e para as flores, para a casa, a batalha, o segredo e a pedra. É um livro de Poesia. Deve ler-se devagar como quem mastiga…
Querido Emanuel. Acabo, quase, como comecei, escrevo-te desta minha pedra chamada minha casa que, há mais de 25 anos, o meu pai e os meus tios construíram na freguesia da Fajã de Baixo. É Domingo. Lá, em baixo a minha mãe frita malassadas, porque é Carnaval, enquanto o meu pai e o meu irmão se preparam para assistir ao Benfica - Porto.
Por aqui me fico fazendo votos de que gostes deste texto e de que as pessoas que, eventualmente, o lerem, acabem por adquirir o teu livro numa livraria.
Termino, citando-te:
““Sei que perdoas a simplicidade do tratamento/porque a morte é bem isto; uma coisa que tudo simplifica (…)” (Meu Adeus a Martinho, p. 121).
Obrigada Emanuel.


Fajã de Baixo, 26 de Fevereiro de 2006


* Todos os poemas citados ao longo deste texto estão incluídos no livro “121 Poemas Escolhidos” editado pela Salamandra no ano de 2003.

[Texto Publicado no Suplemento de Cultura nº 10, hoje, no Açoriano Oriental]