quinta-feira, março 23, 2006

Manifesto a três pancadas

Quero morrer dos meus passos
Como docemente morre a pancada dos saltos.
As ágeis mãozinhas do Espanto, entrecortado, por duas sombras
De espécie ligeira e fresca como as manhãs de Primavera
De onde partíamos os dois, são encantamentos. Na gíria: pândegas.
Não mais morrer a solo sem consigo, contigo ou comigo.
Não mais violas a morrer na areia; não mais esta garganta a arder de inferno
Como se no Verão fôssemos, unos, indivisíveis e quase nitidamente amantes.
As esferas circundantes de um sonho são como os pássaros enjaulados nas mãozinhas do Espanto; surpresos, atacados por cordas de nylon, que o espírito ata às coisas vivas.

Quero morrer dos meus passos, deixar-me cair entre os teus dedos;
Como a adivinha de um conto infantil, moralmente digno das esperas e das partidas
Em aviões cheios de gente para ilhas que nunca mais acabam e que são de chocolate;
Quero morrer dos meus passos como docemente, morreste, quando as janelas das casas estavam fechadas, e por dentro havia a luz dos olhos que, quando dormem, ficam da cor do néon.
As vozes são passadeiras, arquitecturas bicadas; palavras que, ao vento norte, numa noite, crua e verdadeira, morrem dos nossos passos; com os pés calcados do barro, que nas ilhas a fortuna feita sorte, fez nascer nos nossos lábios.
Sangra-me a carne em pedaços e leva à ceia das sete damas, onde o morto, por desmazelo, não possui ninguém que o possa carpir.

Leva-me nos braços; carrega-me, como quando, saltando entre as poças da água me feri, de mimo e beijos, nas pontas dos dedos das mãos.
Quero morrer dos meus passos; deixar de ouvi-los no seu mistério oco de barulho feio e grosso; na chinela cruzada, que comprei para o Natal.
Deixa-me morrer em descanso; deixa-me, que ao tempo do meu tempo não resta mais minuto, hora ou dia, em que não pense de como, ou que como, ou onde, ou quem sabe talvez nesta vida a onomatopeia pudesse entrar seguida da interjeição e caísse, pimba, morta, descalça como a Lianor pela verdura dos versos provençais.
Ah! Deixa-me morrer morta! Deixa-me nos cânticos da aurora, põe-me Mozart; canta-me tudo de novo; as primeiras músicas como o principio das letras na escola no quadro preto e diz-me das vogais e da praia, da avó, da toalha.

Ensina-me a escrever a letra h; a letra m, ensina-me o meu nome; põe-mo na cartolina, dobrada à minha frente, um nome grande, enorme; um nome que soletrado parecia meu e tinha um eco; uma melodia…uma transformação de qualquer coisa menos ácida; menos triste; menos apagada; menos isto ou aquilo.
Dá-me Poesia. Enche-me as veias desta Metáfora que embala o sono dos poetas; dá-me esta palavra em Latim; os versos todos dentro uns dos outros, como se as passagens de cada um, linha a linha, fossem de fogo, a arder e a ver-se…
Chega de disfarces; de rimas que morrem no começo da página; de folhas não numeradas e de ares e de mares e de pessoas a rir para o primeiro clique da armazenagem de catálogo.

Quero morrer dos meus passos. Deixá-los como herança a quem os quiser comprar; não para usar, mas para fechar nas curvas imaginárias de um poema que nunca tive coragem de reescrever…


Maria Amaro

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