sábado, setembro 30, 2006

Recomendação de Leitura


"Não há limite que não seja por ele suportado.
Suporta todo o cansaço.Traições,fadiga,falhanços.
Aconteça o que acontecer tens uns corpo que pesa;
E um chão, mudo,imóvel, que não desaparece."


Gonçalo M. Tavares, "Chão", in 1, Relógio D´Água, Lisboa, 2004, p.115.

sexta-feira, setembro 29, 2006

Galhofa



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Ser ou Não Ser

"Qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca.
Se os novos partem e ficam só os velhos
e se do sangue as mãos trazem a marca
se os fantasmas regressam e há homens de joelhos
qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca.

Apodreceu o sol dentro de nós
apodreceu o vento em nossos braços.
Porque há sombras na sombra dos teus passos
há silêncios de morte em cada voz.

Ofélia-Pátria jaz branca de amor.
Entre salgueiros passa flutuando.
E anda Hamlet em nós por ela perguntando
entre ser e não ser firmeza indecisão.

Até quando? Até quando?

Já de esperar se desespera. E o tempo foge
e mais do que a esperança leva o puro ardor.
Porque um só tempo é o nosso. E o tempo é hoje.
Ah se não ser é submissão ser é revolta.
Se a Dinamarca é para nós uma prisão
e Elsenor se tornou a capital da dor
ser é roubar à dor as próprias armas
e com elas vencer estes fantasmas
que andam à solta em Elsenor."

Manuel Alegre

quinta-feira, setembro 28, 2006

quarta-feira, setembro 27, 2006

Croniqueta XLI ou o Fífia não tem papel e as galinhas não têm dentes ou o plural de um cante a palo seco


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Solilóquio. Trópico. Asfalto, o Fífia de lado, abalado pela temperatura do rasgo lembra batatas de saco, empacotadas a prazo, como as estrelas dos poemas que, escritos, lembram missais de improviso. Ala. Forte, o estandarte das ideias ou os ideais mudados, trocados, dados como uma rima de norte, em cujo primeiro verso sagrado acautela a máxima: Todos diferentes, todos iguais.
O Fífia é plural(mente) banal. Uma baliza sem rede; uma bola vermelha sem ar, cujas funções agravadas podem tornar-se, num breve espaço de tempo, em nariz de colar na cara pintada de "artista". O Fífia não tem papel. Tem pergaminho enrolado com fita encarnada, gosta de gamas de morango e de usar, por estilo, o cabelo por detrás das orelhas preso às cartilagens capilares escassas com que, ocasionalmente, sustenta as suas afirmações. Na desgraça do traço oratório, o Fífia defende-se pelo plural; quando na verdade dita entre dentes: é só um. Porém, a unidade postiça lembra aos mais atentos, uma implantação sem raiz. A coroa, sempre a coroa…Sem poderes de coroação nem lógica de hereditariedade, o nosso Fífia de membranas interdigitais assemelha-se ao mais feio dos patos, cujo grasnar desengonçado assume para os espectadores, lógicas de fita e inacção.
Não justifica o momento, os passos leves do ser nem cuida que, os balões dos tóxicos gases exalados por metáforas de pacotilha insistidas e repetidas possam dotar o Fífia de um corpo de arma e voz. Todo ele é dor, inchaço, custo. Tudo nele é pó, massa e aparelho. Não verga, é certo, mas contorce-se como um fio de plasticina. Porém, longe das personagens de infância como o plasticman, o Fífia enrolado em chumbo, adquire um brilhar quase incandescente, como o sol, que, raras vezes brilha na metereologia da nação; pintado numa tela a 3 D para as ilhas dos Açores. Enfeitado e raro.
A mensalidade do Tempo Fífiador eleva a responsabilidade da maiúscula criatura à qual falta o juízo deixado no espaço livre na boca para, uma vez que seja, no lugar do juízo, possa nascer ou crescer, um sorriso Colgate e real. Sem ela, essa realidade sorridente, o Fífia não poderá, jamais, valer um furo no calendário da Humanidade; ficando, por isso, resumido ao buraco negro da sua existência, aonde o som do bafo da banalidade é tão grande que não deixa ouvir e perceber o "canto dos cisnes", que, segundo ele, lhe sai dos poros, por inspiração. Essa, já sabemos, como (não) corre, acabando mastigada na dentadura de um castor, cujo dique debaixo do chão é presente para as toupeiras. Na lógica Fífiana: as galinhas não têm dentes. Têm bicos. Bicos adocicados e fofos como as nuvens a três dimensões nos ecrãs televisivos. Ficam-lhe bem. Ara senão.
O Fífia é um cante a palo seco como o poema de João Cabral de Melo Neto...

segunda-feira, setembro 25, 2006

Croniqueta XL ou o Fífia é um cicerone de asas invisíveis e máquina de rolo...



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O Fífia está desajustado, cómico e quadrado. Em pé, parece uma palhinha de fundo branco e riscas amarelas; deitado um colar de contas. Porém, como não sabe contar nem gosta de Coca-Cola, o Fífia desajustado, cómico, quadrado, por vezes, espantado, desusado, pasmado, é, nada mais, nada menos, em pé ou deitado, um Fífia fífado; um guardanapo dobrado, um lençol estendido ao vento ou, pura e simplesmente, um banco de pé quebrado. Nas ruas, fotografando os passeios, vendo no ladrilhado das pedras as marcas de cimento, pensa serem selos, que é como quem diz bordados, diferentes dos que a mãe, as tias, em quem tem exemplo para tudo, fazem aos dias de semana para vender na quermesse da freguesia, onde as raparigas atrevidas (como ele as chama) vendem bilhetes, de onde saem bonecas de saias de folhos e canecos de loiça doirados das beiras. Os bordados da família são muito mais bonitos e fazem o gosto aos locais, quando entre bombons e roqueiras, cantigas esganiçadas e crianças aos berros pelos balões perdidos na curva do vento, sai um bordado da sua tia à vizinha do canto da rua. O Fífia comprou a máquina e agora é um tal retratar. Parece um autómato de máquina ao pescoço, presa por uma coleira, que diz: “I love Ponta Delgada”… Entretido, o Fífia fotografa tudo. Às segunda-feiras, depois de um fim de semana todo fotografado, lá está ele à porta do Hipermercado, à espera que abra a loja de fotografia para revelar as suas fotos. Depois, enfia-as em pequenos pacotinhos (porta-retratos); oferece as melhores às tias e mãe e pronto. Está assinalado mais um fim-de-semana. Marcado a verde com a data, o registo das pessoas que encontrou, as suas discrições e descrições; os seus ares, tudo. Qual missal, o Fífia explica tudo bem explicadinho para que daqui a uma centena de anos se saiba, que o poeta Fífia, escritor célebre, romancista de renome e mais qualquer coisa que daqui por 20 anos ele há-de descobrir, passava as manhãs e tardes dos Sábados e Domingos fotografando numa máquina de rolo, baratinha, comprada na feira da ladra, em Lisboa: a sua cidade, as suas gaivotas, as esplanadas, as pessoas, que passeavam com as famílias e os cães, a mãe que gritava dentro do carro, as razões dos seus gritos, as crianças esgazeadas….Enfim, não há cidade que não escape sem ter o seu Fífia. Um cicerone de asas invisíveis, um ser que entre a brisa e a chuva miudinha do Outono, deambule num passe doble inglês, lambendo um gelado, mas sempre de olho debruçado para a objectiva e caneta no dedo pronta a apontar um sobrolho mais levantado, a razão da elevação da sobrancelha ou, porque não, descrever as meias verdes da figura pública que aos Sábados compra pão sempre na mesma padaria. Afinal, o que é de uma cidade (verdadeiramente) sem um Fífia? Um tipo a quem se pergunte: E x? E ele diga logo: x levantou-se, vestiu-se e veio tomar café para a avenida, mas vinha com outra que não a mulher, depois comeram pasteis, e foram passear de mão dada. Ou então, um Fífia a quem se pergunte: Que horas eram quando os viste? E ele diga de imediato: Well, de óculos na ponta do nariz e ar importante: 10h20, pararam o carro e sentaram-se no café. Ele bebeu água. Ela café. Depois beijaram-se. Queres ver a fotografia?
O Fífia é assim um ser exacto. Um ser que de abstracto não tem nada; nem a ponta das orelhas. Um Fífia que a frio vale tudo, mas que, a quente, mete o rabo entre as pernas e muda de nome…É Fífia. E pronto.
-Chega!, diz ele.
(O pior é que nunca o vemos partir.)

domingo, setembro 24, 2006

Citação (importante)

"O que me impressiona, à vista de um macaco, não é que ele tenha sido nosso passado: é este pressentimento de que ele venha a ser nosso futuro."

"Da Evolução", in Caderno H, Mário Quintana

sábado, setembro 23, 2006

sexta-feira, setembro 22, 2006

Quote



"Parques Subterrâneos, esses desconhecidos"
"Os parques de estacionamento subterrâneos colocam em mim uma pressão a que não estou habituado. Quer seja pelas voltas a que estamos obrigados até chegarmos ao piso -15, quer seja pela sensação de estarmos a entrar em terreno desconhecido, leva-me a atingir ponto-nervoso. É bem verdade. Chego por vezes a sentir-me mal. Ora esse desconforto provém de mil e uma coisas, a que agora vos vou poupar, senão não saíamos daqui hoje.
A visita a um parque subterrâneo de estacionamento encerra em si (e em mim, muitas vezes) todo um ritual de terror que se apodera da minha pessoa.
Assim que ultrapassamos o nível -1, acredito piamente que a qualquer momento posso cruzar-me com Júlio Verne. Esta minha paranóia não costuma deixar um ambiente muito saudável no veículo em que me encontro, já que não me posso cruzar com ninguém com barbas brancas que desato a gritar JÚLIO, OH JÚLIO!!!
Por outro lado, se ultrapassamos o nível -2, acredito que o calor e sufoco que se faz sentir resultam da proximidade crescente ao manto, ao núcleo terrestre e ao aparente abandono da crosta terrestre. É então que atinjo aquilo que já denominei como ponto-nervoso. Fico com os olhos raiados e exoftalmia, ao mesmo tempo que evacuo com a frequência de um burro. Vejo magma, sinto gases (e por vezes eu próprio largo-os) e deixo de respirar.
Tudo isto termina quando me dizem que não tenho que contribuir para o pagamento do estacionamento no parque."

Por: AMAFAS
roubado
daqui

A propósito...

"Há pessoas que são como aviões no ar:
precisam de muita gente a apoiá-los de terra.
Essa que se insinuou a meia-bicha devia ser uma delas:
com um sorriso meteu-se à frente de quatro e só dois resmungaram.
Pouco. Estão habituados ao atropelo.
A espertalheta virou-se para mim a pedir-me a caneta.
"Canetas não se emprestam, mas por ser para si...",
disse eu. E dei comigo de caneta na mão
a oferecê-la áquela que me ultrapassava
e com a minha caneta afinal assinava.
Até os burocratas que destrabalhavam
ao guichê assomaram quando ela firmava.
Eram três (os gentis!) a ouvir pulseiras
que ela tilintava com as suas maneiras
de nada subscrever logo assim às primeiras.
Quando, de língua de fora, ela assina-assinou,
um veio com o mata-borrão e incontinenti lhe secou
a assinatura. Ela sorriu e entregou
o requerimento para sua excelência.
A bicha comoveu-se: teria ela urgência?
Assim se passa de embirrenta intrometida
a senhora por três (e por mim) assistida,
que à beira-guichê é assim a vida..."


"Guichê/2", Alexandre O´Neill

quarta-feira, setembro 20, 2006

segunda-feira, setembro 18, 2006

Salada


Talvez mais de maçã fossem os movimentos, quedados em procura, em hastes de verdura ou ares, asas, águas e águias nas varandas, trepando pelos ferros, em gritos tresloucados de lados A e B. Talvez. Talvez na rotação dos dedos coubessem mais palavras e os dedais das costureiras sentadas nas escadas de pedra e sem corrimão fossem anúncios de papéis para cumprir nos Teatros de plasticina. Talvez. Quem sabe se chegaste ao porto, se de dentro das ondas vieram pessoas com barbatanas e óculos de tirar e por como adereços arrumados nos armários de papelão, encostados nas paredes, presos. Talvez. Um, dois ou três malucos debaixo dos tapetes, pendurados nas grades da casa de Verão e o som do assobio, o som da bola de futebol. Talvez. Laços, fitas, uns cabelos pretos despenteados; garfos, colheres e as sopas todas feitas com terra e pedras, comidas a fingir, nos pratos invisíveis. Eis que sou. Eis que estou talvez
- Uma loucura de levantar abraços e pernas e mãos de debaixo do chão com pancadas de dedos no teclado, que dita os movimentos. Talvez. Ou não. Talvez (mais se calhar) a vida faz-se à sorte e na cadeira do diabo há prisões de papel e ganchos de içar bonecos de borracha; casas, casinhas, casotas; do criativo ao dito nulo da hermenêutica banal com que a metáfora se tece de hiper-sensibilidade. Comovo-me na contrapartida do verbo que, aqui e agora, me pede que lhe perdoe o tom. Não há janelas na casa da fantasia, nem consta que as minhocas tenham tecido teias; papel das aranhas, cuido. Na espera, entre o salto do artista e a quebra da queda, há dois ou três sapateiros à espera de lhe dar a graxa. Como um vício de esponja em riste. No meio de tudo, de certeza, talvez mais de maçã pudesse ser o assobio da caneta farta de escrever banalidades. Assim como assim as palavras cheiram e, pouco ou nada, se sentam. Digo: sentem. Irrequietas, as ditas.
Talvez mais de maçã
E ficava feita a salada.

sábado, setembro 16, 2006

Citação (Importante)



"Tive infância, fui feliz, os crescidos tratavam-me bem.
Escreve olhos cheios de infância, anda. Assim como assim talvez te ajude a viver."


António Lobo Antunes

sexta-feira, setembro 15, 2006

quarta-feira, setembro 13, 2006

Citação

"Coaxa o tempo. Zurra quando calha.
Pipila, o coitadinho. À beira charco, plofa.

Não te iludas.

Testaruda, a besta arrancará
do meandro de túneis
- para bramir, à luz sem uma prega,
o tempo.

Está atento."


"Primeira Advertência Séria". Alexandre O´Neill

segunda-feira, setembro 11, 2006

Recomendação de Leitura


Manual de Bolso
144 páginas
Joana Del Guercio

Cidade da Toupeira (2)




Croniqueta XXXIX ou o Fífia quer ser uma Toupeira


O Fífia vive em Ponta Delgada. No concelho, digo. Isto porque, embora habituado a calcorrear as ruas da cidade, entre as Portas da Cidade e a Igreja Matriz; embora sendo ele frequentador das missas de São José e sendo ele, também, cliente das lojas da rua dos Mercadores; embora tudo isso, o Fífia nasceu nos Arrifes e, a primeira vez, que a mãe o deixou vir sozinho à cidade, tinha 6 anos. Há-de lembrar-se para sempre desse dia. Carnaval em pleno. Corso carnavalesco e ele, aos 6 anos, deliciado e vestido de toupeira, enchendo-se de orgulho dos seus pêlos cor de chocolate e do focinho arredondado que, a custo, a mãe e as tias lhe haviam bordado na parte da frente do fato, mesmo abaixo dos dois feijõezinhos que lhe faziam de olhos iluminados e curiosos, quais holofotes de porto de abrigo ou caserna de soldados. Há-de lembrar-se desse dia para sempre; da árvore verde que trazia presa à mão e do montinho de terra a fingir, que se descobria atrás, pendurado no rabinho de cartão. Hoje, Domingo, depois da grande chuvada e de se acalmar o vento que a madrugada trouxe aos Arrifes, desceu à cidade, armado com a sua nova máquina fotográfica digital. Encontrou imensos buracos e terras levantadas, máquinas amarelas, fitas vermelhas e brancas e muitos tapumes brancos, aonde se podia ler que Ponta Delgada era um concelho feliz. Curioso, depois de ter descoberto tantos buracos e buraquinhos, uns que mais pareciam reproduções de lagoas ou imitações de piscinas, sentou-se a ler o jornal nos muros dos canteiros ao pé da Geladaria Central. Leu, então, que será construído um troço subterrâneo entre as piscinas de São Pedro e a Praça Gonçalo Velho. Uma nova rede viária no subsolo da Avenida Marginal, com duas faixas de rodagem, rotundas e, imagine-se (!) 929 lugares para estacionar. Sentiu-se personagem da Guerra das Estrelas; herói de jogos de computador...
Quem sabe se, assim de repente, não fora o seu fato de fantasia de toupeira de há 10 anos, o mote para tão fantástica ideia da Câmara de Ponta Delgada. Ele, que é rei, vá onde vá; ele que parecendo distraído está sempre em cima do acontecimento; ele que sempre sonhou que o futuro da cidade era ela transformar-se numa espécie de gare de toupeiras, onde os munícipes do concelho feliz, que ele habita, caminhassem em quatro patas, tal qual mamíferos de focinho comprido e orelhinhas espertas, espreitando entre os pêlos curiosos das suas cabeças amestradas; ele, que já se imagina, num passeio domingueiro, entre as portas da cidade e a torre do solmar, caminhando lentamente, em cima das quatro patas, chiando. Pode que, até, no Campo de São Francisco, onde, como também diz no jornal, será construído o tal Terminal Rodoviário (tem dúvidas se Terminal significa que aqui termina a fúria do buraco) construam um curral para Toupeiras e seus familiares, aonde aos Domingos, depois da missa, todos se juntem para, em paz, cantar o hino de ponta delgada, armados de máscaras de mergulho, barbatanas e bóias, para, em caso de enchentes, todos se poderem safar. Estava neste sonho todo, já imaginando, cenários de lapas e caranguejos na rotunda subterrânea, quando reparou, que a sua entrada nesse mundo subterrâneo estava impedida.
O Fífia não é eleitor da Presidente da Câmara. Isso sabe muito bem. Naquela altura, andou atento às campanhas, mas não podia votar.
O Fífia fechou os jornais. Triste, levantou-se e caminhou ruminando nas declarações da presidente da Câmara. Afinal, tanto sonho, tanta coisa e não é que nada daquilo é para ele. Não vai poder circular nas rotundas debaixo da terra, em cima das quatro patas; não vai poder chiar nem brincar com as amigas nas ruas debaixo do chão; não vai poder vir com a mãe passear debaixo do chão, nem vai poder trazer as tias, ao Domingo, até ao Campo para comer um gelado com os pés metidos dentro de água. Afinal, aquela obra que, até parece que será cara; aquela obra que é para o concelho feliz, de que ele e as tias e a mãe também fazem parte, não vai poder ser usada por nenhuma destas pessoas que ele conhece. Nem por ele. Nem a mãe nem as tias são eleitoras desta Presidente. A mãe já lhe explicou que no dia das eleições estavam na América. Mas, que não faz mal. Porque, assim, que começarem a abrir as covas para meter lá dentro as ruas, as rotundas e os lugares de estacionar os carros, a mãe vai mandar entregar na Câmara, a fotografia do nosso Fífia, vestido de toupeira comendo um gelado, mesmo ao lado daquela árvore muito grande que tem no Campo de São Francisco. Pode que até passe a ser cartaz turístico e se esqueçam desse pormenor de ser eleitor.

terça-feira, setembro 05, 2006

Citação (importante)

"Duas amigas telefonam-me de Lisboa de urgência.
Alta noite, dormindo em Barcelona, num salto as oiço.
A perfídia centralista outorga carta de Colónia às Ilhas.
Sofro as minhas dores de coxo: prás do sabonete falta-me a paciência.
Os fios telefónicos, com fogo de lagoa, vibram:
Aquelas são das últimas Briandas do Arquipélago:
Uma pobre mulher com traços de fogo nos olhos,
A outra, irada, na alva beleza se excede,
Ambas me emprazam a tudo pelos gados,as nuvens,as calhetas.
O conselho da revolução espera-nos amanhã:
Mesmo de maca, ao General compareço.
Um rumor de Aguilhadas, de bull-dozers velhos, latas de leite,
[ corre as ondas
Chamam-nos os mortos, o mulherio, os baleeiros mansos com o cabo
[ do harpão nas unhas.
As minhas velhas primas, desamparadas, esmolam dos senhores
[ do MEC a renda dos vidros
Confiam no velho coxo, e o velho coxo corre a acudir.
É como fogo posto ou briga de arruaceiros de fora.

As furnas são nossas.
As pipas do vinho velho são nossas,
As carroças do peixinho nossas,
O leite das tetas que ordenhamos,
As pontas com poucos faróis muita craca,
Os caminhos seculares mal calçados
Os chafarizes com um tapete de bosta quente cheiram bem.
Vamos salvar as ilhas: Eu tenho lá ossos de Pai e Mãe.
Sujo seria se não acudisse ao chamado. Rufo ou roqueira, fogueira
[ acesa aos piratas,
Urro de caldeira arrebentada, qualquer apito de dedos na goela
[ serve para a porrada
Amiga, espera-me com as tuas inesgotáveis reservas exoftálmicas:
Arregalar os olhos é um privilégio oportuno
Tu outra, conta comigo na tua dureza brusca ( tu que és sempre menina)

E lá vamos bater o pé de Ciprião a Filipe.
O Marquês de Santa Cruz era uma ovelhinha comparado a estes carnívoros.

A Sala das Batalhas por Escorial explica tudo.
Eu agarro uma insónia, além de perder a noite a berrar da ciática,
Mas estes filhos da mamã hão-de nos pagar tudo o que nos fizerem,
Estes filhos de cerva hão-de afinal entrar na linha,
E levar nas canelas,
Metidos nos porões
( As moças às janelas),
Os grilhões
Que nos queiram enfiar à socapa nos pulsos duros da canga,
Eles que nos tratam como se andássemos de tanga.

( Até que me passe a zanga)"

Corsários à Vista, Vitorino Nemésio
31.03.1976