Croniqueta XXXIX ou o Fífia quer ser uma Toupeira
O Fífia vive em Ponta Delgada. No concelho, digo. Isto porque, embora habituado a calcorrear as ruas da cidade, entre as Portas da Cidade e a Igreja Matriz; embora sendo ele frequentador das missas de São José e sendo ele, também, cliente das lojas da rua dos Mercadores; embora tudo isso, o Fífia nasceu nos Arrifes e, a primeira vez, que a mãe o deixou vir sozinho à cidade, tinha 6 anos. Há-de lembrar-se para sempre desse dia. Carnaval em pleno. Corso carnavalesco e ele, aos 6 anos, deliciado e vestido de toupeira, enchendo-se de orgulho dos seus pêlos cor de chocolate e do focinho arredondado que, a custo, a mãe e as tias lhe haviam bordado na parte da frente do fato, mesmo abaixo dos dois feijõezinhos que lhe faziam de olhos iluminados e curiosos, quais holofotes de porto de abrigo ou caserna de soldados. Há-de lembrar-se desse dia para sempre; da árvore verde que trazia presa à mão e do montinho de terra a fingir, que se descobria atrás, pendurado no rabinho de cartão. Hoje, Domingo, depois da grande chuvada e de se acalmar o vento que a madrugada trouxe aos Arrifes, desceu à cidade, armado com a sua nova máquina fotográfica digital. Encontrou imensos buracos e terras levantadas, máquinas amarelas, fitas vermelhas e brancas e muitos tapumes brancos, aonde se podia ler que Ponta Delgada era um concelho feliz. Curioso, depois de ter descoberto tantos buracos e buraquinhos, uns que mais pareciam reproduções de lagoas ou imitações de piscinas, sentou-se a ler o jornal nos muros dos canteiros ao pé da Geladaria Central. Leu, então, que será construído um troço subterrâneo entre as piscinas de São Pedro e a Praça Gonçalo Velho. Uma nova rede viária no subsolo da Avenida Marginal, com duas faixas de rodagem, rotundas e, imagine-se (!) 929 lugares para estacionar. Sentiu-se personagem da Guerra das Estrelas; herói de jogos de computador...
Quem sabe se, assim de repente, não fora o seu fato de fantasia de toupeira de há 10 anos, o mote para tão fantástica ideia da Câmara de Ponta Delgada. Ele, que é rei, vá onde vá; ele que parecendo distraído está sempre em cima do acontecimento; ele que sempre sonhou que o futuro da cidade era ela transformar-se numa espécie de gare de toupeiras, onde os munícipes do concelho feliz, que ele habita, caminhassem em quatro patas, tal qual mamíferos de focinho comprido e orelhinhas espertas, espreitando entre os pêlos curiosos das suas cabeças amestradas; ele, que já se imagina, num passeio domingueiro, entre as portas da cidade e a torre do solmar, caminhando lentamente, em cima das quatro patas, chiando. Pode que, até, no Campo de São Francisco, onde, como também diz no jornal, será construído o tal Terminal Rodoviário (tem dúvidas se Terminal significa que aqui termina a fúria do buraco) construam um curral para Toupeiras e seus familiares, aonde aos Domingos, depois da missa, todos se juntem para, em paz, cantar o hino de ponta delgada, armados de máscaras de mergulho, barbatanas e bóias, para, em caso de enchentes, todos se poderem safar. Estava neste sonho todo, já imaginando, cenários de lapas e caranguejos na rotunda subterrânea, quando reparou, que a sua entrada nesse mundo subterrâneo estava impedida.
O Fífia não é eleitor da Presidente da Câmara. Isso sabe muito bem. Naquela altura, andou atento às campanhas, mas não podia votar.
O Fífia fechou os jornais. Triste, levantou-se e caminhou ruminando nas declarações da presidente da Câmara. Afinal, tanto sonho, tanta coisa e não é que nada daquilo é para ele. Não vai poder circular nas rotundas debaixo da terra, em cima das quatro patas; não vai poder chiar nem brincar com as amigas nas ruas debaixo do chão; não vai poder vir com a mãe passear debaixo do chão, nem vai poder trazer as tias, ao Domingo, até ao Campo para comer um gelado com os pés metidos dentro de água. Afinal, aquela obra que, até parece que será cara; aquela obra que é para o concelho feliz, de que ele e as tias e a mãe também fazem parte, não vai poder ser usada por nenhuma destas pessoas que ele conhece. Nem por ele. Nem a mãe nem as tias são eleitoras desta Presidente. A mãe já lhe explicou que no dia das eleições estavam na América. Mas, que não faz mal. Porque, assim, que começarem a abrir as covas para meter lá dentro as ruas, as rotundas e os lugares de estacionar os carros, a mãe vai mandar entregar na Câmara, a fotografia do nosso Fífia, vestido de toupeira comendo um gelado, mesmo ao lado daquela árvore muito grande que tem no Campo de São Francisco. Pode que até passe a ser cartaz turístico e se esqueçam desse pormenor de ser eleitor.
2 comentários:
Esta tua "crónica" é mordaz, engraçada e constituirá uma crítica a vários aspectos de Ponta Delgada (não conheço).
Gostei muito deste teu estilo. Continua.
Beijos.
Estou a ficar velho. Veja lá Sra Dra que já faz 1 ano que se fizeram 1s debates intitulados «Pensar PDL. Dizem-me que acabaram...é pena!
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