terça-feira, outubro 31, 2006

Ventanias

Há cabeças onde não cabem cabelos e janelas, que abertas, deixam correr as correntes a fugir dos dedos malhados pela “pressa” cultural. Perde-se o tempo à vontade, como se o testemunho da corrida fosse uma roda de fadas e mochos, em cujas lunetas chique bate o badalo do Tempo, como um sino a marcar o ritmo da pressa com que se despejam letras nas sobras da sopa (requentada). Na dúvida, o salto guincha, quando cai, porque a cera na pele é tanta, que o culto mascarado, elevado pela sombra dos tacões dos sapatos, se amplia na base literária de um esboço. Não queiramos o barulho
das aparências; nem as asas fingidas dos anjos caídos das prateleiras. Não desejemos que as obras se despachem em edições de bolso com tamanho de algibeira.
Não deixemos que a Poesia morra no último degrau, a descer, de umas escadas a que faltam degraus, jogo de luzes, suficientemente iluminado, e, porque não (?),
amor…
Exijamos a capacidade reflexiva e reflectiva dos pensamentos livres dos homens livres
que passeiam nas avenidas. Produzamos cultura, como se a sentíssemos, de facto, a anima humana, que a raiz do tempo eleva além cronómetro contemporâneo.
O mar tem corrido sempre e as letras nos livros, nos lábios do actor ou na ponta dos dedos do escritor, são, nada mais nada menos, do que esta imagem de um Livro enorme,
onde, qual gaivota, em dia de chuva, as nossas mãos se unem e dançam com uma calma
cultural algures longe da pressa devoradora dos talentos.
Soletrar é importante.
Faz falta sentir como quem soletra uma ventania.

Nota de Abertura do Suplemento de Cultura do AO(para assinantes). Com textos/fotografias de Guilherme Marinho, Rodrigo Francisco, Berto Messias, Carla Cook, Paula Leal e Anabela Caldeira

segunda-feira, outubro 30, 2006

Se há copos o que é que falta?

Os loucos passeiam nos fatos engravatados de Domingo das missas marcadas pelo ritmo dos calendários. Nos postos de informação turística, inglesas e alemãs abraçam-se a mapas da cidade e falam em línguas estranhas das suas expectivas. (Não as entendo). Sou assaltada por um misto de confusão entre os dialectos tribais e as variações que daí advêm, como sinais…mas mais nada. (Não vale a pena empolar muito isto)
Nesta cidade, fica-se com a sensação de que viramos páginas, desde o momento, em que saímos de casa até ao momento em que encontramos uma outra Amália a cantar na esplanada do mesmo café de há muitos anos. (Está igual a si mesma). No rio não se ouve o barulho dos carros das vedetas. Ali, só o sol faz poses e fitas, mas em silêncio. Há crianças (semi) livres correndo em bicicletas de plástico, compradas para deslizar ao fim-de-semana, em corredores estreitos de cimento assinalados por um lettering de bike americano. Aqui o vento é transtornado e as pessoas, paradas em sintomático pause, lembram as asas das borboletas caídas e mortas, depois do esguicho do Dum-Dum atirado ao ar da minha criancice. Não há palavras para descrever a solidão dos passos; nem me parece que a avenida deste fim de tarde, quando todos regressam, certos, nos seus compassos predefinidos, como autómatos enjaulados nas cadeiras dos automóveis, seja realmente morada. As casas amontoam-se em (jogos de plasticina) e, nas varandas, no lugar das flores e da roupa estendida, nascem, como cogumelos, cadeiras de plástico e mesas protegidas por guarda-sóis “Modelo”. É a força do marketing, dizem os velhotes dos bancos de madeira verde desta estória em que cabe, por razões de lógica, um fio de lume, trazido, "em braços", pelas luzes dos anúncios publicitários da cidade contada. Neste ponto, entra um homem sozinho divagando nos espaços da memória, como o passado que, aos berros, diz assim:
Se há copos, o que é que falta?
- E, prontos,
exclama o coloquial.
Porque, afinal diz-se falta e logo aparece um suplente.
Mesmo que seja de retorno.
Pronto(s).

domingo, outubro 29, 2006

Recomendação de Leitura



Six Memos For The Next Millennium
1. Lightness
2. Quickness
3. Exactitude
4. Visibility
5. Multiplicity
6. Consistency

quinta-feira, outubro 26, 2006

Citação (importante)

"No fundo o que é enlouquecer? É sair de uma determinada norma, não é? É preciso muita coragem para se ser realmente louco."


António Lobo Antunes, in O Jornal, 30 de Outubro de 1992

Hoje,às 18h30, no Teatro Maria Matos, em Lisboa, apresentação do livro de António Lobo Antunes: Ontem não te vi em Babilónia.

segunda-feira, outubro 23, 2006

Com medo de o perder nomeio o mundo*

imagem

Eu sou, entre este e o outro tempo,
Uma vírgula marcada na distância pontuada;
Alguém a quem faltaram dedos mágicos e fadas
Para a corrida em patins desde a escola até à casa verde
Com janelas verdes e uma campainha de tocar a cantar.
Sou um sapato calçado numa imaginação em pausa;
Um atilho desapertado (nela mesma) revolta e devolvida
À sola, enrolada por baixo, não dita, segredada…
E sou, como certeza e credo, na distância do tempo dos navios no mar,
Nas suas chaminés altas e fumegantes o pescador que herdei nos braços,
O lavrador que, em tempos, me pegou ao colo ou, pura e simplesmente, o homem que, nos cabelos brancos, trazia a minha mão pequena impressa como um carimbo de passageiro frequente.
Tenho pessoas dentro. A minha gente.
E, nos meus olhos, sei-o, há muito tempo, havia isto por escrever.


Fajã de Baixo, 20/10/2006

* Verso do poema de Vitorino Nemésio "Nomeio o mundo"

sexta-feira, outubro 20, 2006

Bolas e Fitas

A cidade de Ponta Delgada veste-se de Natal.
Estamos em Outubro.
Chegará o velho de Natal no dia de Todos os Santos?
...

quinta-feira, outubro 19, 2006

Recomendação de Leitura



"(...) o estúpido, pelo contrário, não suspeita de si mesmo: julga-se discretíssimo, e daí a invejável tranquilidade com que o néscio se alicerça e instala na sua própria necedade. Como aqueles insectos que não há maneira de tirar do oríficio onde vivem, não há modo de desalojar o estúpido da sua estupidez, levá-lo a passear um bocado mais além da sua cegueira e obrigá-lo a contrastar a sua rude visão habitual com outros modos de ver mais subtis. O estúpido é vitalício e sem poros. Por isso Anatole France dizia que um néscio é muito mais funesto que um malvado. Porque o malvado descansa algumas vezes; o néscio, jamais.(...)"

(Ortega Y Gasset, A Rebelião das Massas, Relógio D´água, Lisboa, s.d., pp. 82)
preço: 13,09 euros

quarta-feira, outubro 18, 2006

"A essência da Poesia"

"Não aprendi nos livros qualquer receita para a composição de um poema; e não deixarei impresso, por meu turno, nem sequer um conselho, modo ou estilo para que os novos poetas recebam de mim alguma gota de suposta sabedoria. Se narrei neste discurso alguns sucessos do passado, se revivi um nunca esquecido relato nesta ocasião e neste lugar tão diferentes do sucedido, é porque durante a minha vida encontrei sempre em alguma parte a asseveração necessária, a fórmula que me aguardava, não para se endurecer nas minhas palavras, mas para me explicar a mim próprio.
Encontrei, naquela longa jornada, as doses necessárias para a formação do poema. Ali me foram dadas as contribuições da terra e da alma. E penso que a poesia é uma acção passageira ou solene em que entram em doses medidas a solidão e solidariedade, o sentimento e a acção, a intimidade da própria pessoa, a intimidade do homem e a revelação secreta da Natureza. E penso com não menor fé que tudo se apoia - o homem e a sua sombra, o homem e a sua atitude, o homem e a sua poesia - numa comunidade cada vez mais extensa, num exercício que integrará para sempre em nós a realidade e os sonhos, pois assim os une e confunde.
E digo igualmente que não sei, depois de tantos anos, se aquelas lições que recebi ao cruzar um rio vertiginoso, ao dançar em torno do crânio de uma vaca, ao banhar os pés na água purificadora das mais elevadas regiões, digo que não sei se aquilo saía de mim mesmo para se comunicar depois a muitos outros seres ou era a mensagem que os outros homens me enviavam como exigência ou embrazamento. Não sei se aquilo o vivi ou escrevi, não sei se foram verdade ou poesia, transição ou eternidade, os versos que experimentei naquele momento, as experiências que cantei mais tarde.
De tudo aquilo, amigos, surge um ensinamento que o poeta deve aprender dos outros homens. Não há solidão inexpugnável. Todos os caminhos conduzem ao mesmo ponto: à comunicação do que somos. E é necessário atravessar a solidão e aspereza, a incomunicação e o silêncio para chegar ao recinto mágico em que podemos dançar com hesitação ou cantar com melancolia, mas nessa dança ou nessa canção acham-se consumados os mais antigos ritos da consciência; da consciência de serem homens e de acreditarem num destino comum."


Pablo Neruda, in Nasci para Nascer (Discurso na entrega do Prémio Nobel)

terça-feira, outubro 17, 2006

Citação (importante)

Discurso ao príncipe de Epaminondas,
mancebo de grande futuro



Despe-te de verdades
das grandes primeiro que das pequenas
das tuas antes que de quaisquer outras
abre uma cova e enterra-as
a teu lado
primeiro as que te impuseram eras ainda imbele
e não possuías mácula senão a de um nome estranho
depois as que crescendo penosamente vestiste
a verdade do pão a verdade das lágrimas
pois não és flor nem luto nem acalanto nem estrela
depois as que ganhaste com o teu sémen
onde a manhã ergue um espelho vazio
e uma criança chora entre nuvens e abismos
depois as que hão-de pôr em cima do teu retrato
quando lhes forneceres a grande recordação
que todos esperam tanto porque a esperam de ti
Nada depois, só tu e o teu silêncio
e veias de coral rasgando-nos os pulsos
Então, meu senhor, poderemos passar
pela planície nua
o teu corpo com nuvens pelos ombros
as minhas mãos cheias de barbas brancas
Aí não haverá demora nem abrigo nem chegada
mas um quadrado de fogo sobre as nossas cabeças
e uma estrada de pedra até ao fim das luzes
e um silêncio de morte à nossa passagem


Mário Cesariny, Manual de Prestidigitação, Lisboa, Assírio & Alvim, 1981

segunda-feira, outubro 16, 2006

Croniqueta XLIII ou o Fífia é um Lagópede piador ou a calúnia é a arma dos vencidos ou “Cuidado, Casimiro, cuidado com as imitações”*…





"(...)Se viver é distinguir-se, o orgulhoso deveria providenciar para não se parecer com ninguém. Mas a inveja, sob a sonante designação da emulação, trai-os: os soberbos vêem antes os modelos honrados e celebrados e querem ser celebrados e honrados a par deles, ou mesmo superá-los e desalojá-los, e não se dão conta de que são obrigados, para começar, a colocar os pés nas suas pisadas e no seu caminho.(...)"

"Os Imitadores", in Relatório sobre os Homens de Giovanni Papini.

Se o Fífia fosse uma moeda estaria toda dentada, dado que são muitos os dentes que, ultimamente, têm tentado roê-lo procurando, entre fios de palhaços, ainda não deixados no baú e carros de corrida de pista, o sumo daquelas suas ideias ditas, em público, como se fossem Ideias reais. Eles gostam. Eu não.
No fim, depois da luz de néon apagada e da meia dúzia de pessoas, cujo magistral rabo arrependido, dói na ocupação de seis de cinquenta cadeiras dispersas pela sala; depois de lidas as resenhas do que, afinal, foi proferido ali, pelo Fífia que ainda balança entre a idade da fralda e a mão da mãe, entre a fita e o mimo ou, pura e simplesmente, entre o amarelo e o branco, depois disso tudo; dá-se nele um ar que não arde, de um mar que não corre e, qual gafanhoto, apanhado na correria da chama, o Fífia queda-se e desaparece. Afinal, não foi há muito, muito tempo assim; que, no meio dos foguetes e das velas, soprou poucos anos mais que a maioridade. Agora, anda atarefado nesta sua era de ser grande, estendendo, aflito, passadeiras vermelhas para passarem os velhos e trôpegos, que se deleitam com as suas ideias miméticas. O Fífia é, por isso, uma vergonha para a “Poética” de Aristóteles. Para actor também não serve e quando, enredado nas suas próprias palavras, citando dezenas de mentores, sem dizê-lo, o Fífia parece uma corda bamba, cujas pontas, queimadas por um isqueiro de marca, deslizam na passadeira de mais um tempo. O Fífia não tem remédio que lhe valha. Os santos desconfiam dele e as esmolas que lhe dão não passam de traições ao dente. O Fífia não dá por isso. É tacanho. Egoísta. O Fífia sofre do mesmo mal de que sofrem aqueles que, mesmo passados pelas tormentas, mesmo levados em braços depois das derrotas, mesmo vendo, sentindo, cheirando e ouvindo tudo às claras, se recusa a querer ver, querer sentir, querer cheirar e querer ouvir o tempo de hoje. Prefere as conversas ralas, que como as papas, se derretem na boca dos ouvintes. Prefere as palavras poucas com trocadilhos de meia tigela de caroço. Prefere as distâncias imaginárias, quando monta no seu burro de duas patas, disfarçado de Lagópede e pia as suas ideias tristes, pouco claras e quase desmaiadas. Se o Fífia fosse uma luva teria dois dedos. Um para virar as páginas dos livros grandes que lê (grandes em tamanho) e o outro para por no ar à espera de vez. Se o Fífia fosse um alguidar teria asas dos lados e seria opaco. Dentro, guardar-se-iam batatas greladas pelo tempo de espera. Se o Fífia fosse uma luz de janela estaria sempre a apagar e a acender tal é a sua pressa para chegar onde já não está ninguém. Se o Fífia fosse um buraco teria fim sem começo, porque o nosso Fífia de hoje não atinou ainda com a forma de começar e, ao invés, deleita-se com fins de histórias repetidas e já sem nexo…O nosso Fífia, a prazo, tem data de há vinte anos.


* Sérgio Godinho

Agenda



Praia da Vitória de 27/10 a 05/11

segunda-feira, outubro 09, 2006

Croniqueta XLII ou o Fífia é uma carpideira...


Em todos os poleiros, onde se lhe dá garantia de som e assistência, o Fífia aparece. Ele é discurso de mangas arregaçadas, de gravata pendurada no gargalo ou, se mais descontraído, como se, vindo das terras de longe, depois da fartura da ausência, lhe tivesse acudido o sol da jovialidade. Tudo como num soneto de vitória, cujas regras das quadras e tercetos, se perdessem numa obra de cordel. Porém, para mal dos nossos pecados, Fífiazinho não se cansa e qual disco riscado lastima-se e lastima-se e lastima-se diante da assistência que, garantida, aplaude.
O Fífia parece um cartão às tiras; desfiado pelo ensopado da água; morto por um urro de bravura, como, se em chegando-se ao palanque, as hostes se levantassem em peso, não para o mandar embora, mas antes para o abraçar e beijar qual Galaaz na conquista do pote de oiro, perdido nas selvas negras de uma floresta deserta do arquipélago. Mas este Fífia não é Galaaz, nem consta que o poço onde se enfiou até aos artelhos tenha oiro para lhe dar. Pobre. Mísero e escuro é o lugar onde está. Só assim se justifica a visão triste e aflita que tem de tudo e de todos. Na queda, dizem, bateu com a cabeça e sem sombras que lhe valessem nem guardas para o defender, pôs-se a modos de levar um susto. Assim foi. Ganhar a vida. Ser rei (sempre esta qualidade real a pesar-lhe a consciência, como um desejo pleno, uma conquista, uma lembrança!)e correr entre os nativos despidos e as nativas grávidas de crianças para aculturar.
O Fífia parece uma carpideira profissional: chora o defunto alheio; o que nos confunde. Sentimos uma certa teatralidade no modo como põe a cabeça sobre a cena, enquanto da boca lhe vão saindo todos os sinónimos de catástrofe que possamos imaginar.
O Fífia não ri; chora e nestes dias de chuva mais forte, o Fífia no “glamour” dos seus mais de 40 anos, não sendo propriamente uma pessoa desconhecida do público, chega a deixar atrás de si, um rasto de pena. O Fífia é daquelas pessoas que irrita; porque fala, fala, fala, pede desculpa pelo meio, a cada duas frases e depois, não cansado, de boca aberta, como se estivesse esfomeado, mama nas palavras friorentas que vai deixando cair dos beiços como fel. Para ele, não há mistérios nem casos por desvendar; tudo é forma, arco e concreto. Tudo se desenha no papel. Rolando, entre a gramática dos seus dias, de saco de lenços preso ao cinto das calças, distribui sorrisos aflitivos como quem entre uma carpeirice inglória e um lençol de lágrimas vãs, pede, roga e implora para o deixarem ficar. Afinal, que havia de ser o Fífia sem um ai para suspirar? Que havia de ser do Fífia sem a cobiça a suspirar-lhe nos pólos como uma garrafa meio bebida, cujo conteúdo, por ser velho, está azedo e cheio de mofo? Afinal, que havia de ser deste Fífia sem um defunto para chorar; um que fosse melhor para o seu palrar; um a quem se deitasse o olho mais depressa e, a pronto pagamento, se chorasse, em troca do lugar.
O Fífia, este Fífia, em cuja cabeça mora, suspensa uma lâmina de corte fino, anda desesperado, sozinho e triste, vertendo pela raiz do seu cabelo, a “vã cobiça” e a não “glória de mandar”…

(Este Fífia vai zangado)

Citação (importante)

"Recomeça...
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar
E vendo,
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças."

Miguel Torga, Sísifo


Citação (importante ) que dedico ao Hermenegildo Galante na esperança de que as suas arrejeitadas voltem, porque nos fazem falta coisas como esta:

"No jogo há sempre quem lastime a derrota pela ausência da sorte.
Na vida há sempre quem se queixe da falta de liberdade pela incapacidade própria de ser livre.
Num ou noutro caso só a santa paciência pode ajudar.
Eu cá não sou santo e a minha paciência tem limites."

D´Arrejeite, a 23 de Junho de 2006

sexta-feira, outubro 06, 2006

Canção de Estar em Terra


Fotografia:AM

"Da sede meu amor farei um barco.
Uma vela no porto. E ao vê-la perto
eu direi meu amor que por ti parto
e fico e firo e faço e sigo e ardo.

Direi a rosa o cravo o trevo o cardo.
Darei o corpo, amor. Direi um astro.
Ai flor de quem está farto farto farto
de rimar contra a maré em pinho incerto.

Que mais direi amor? Eu que maldigo
eu que mal amo as coisas conquistadas
que mais direi? Anéis corais espadas?
Já mal me há-de bastar o que eu não digo.

É aqui, de bruços sobre a espuma
que o mar nos causa a dor de estar em terra.
E as palavras nos doem uma a uma.
E os homens em Lisboa fazem guerra."

Joaquim Pessoa
125 poemas: antologia poética. 3ª ed. [Lisboa]: Litexa, 1989, p. 67.

quinta-feira, outubro 05, 2006

Citação (importante)

Não importa sol ou sombra
camarotes ou barreiras
toureamos ombro a ombro
as feras.
Ninguém nos leva ao engano
toureamos mano a mano
só nos podem causar dano
espera.

Entram guizos chocas e capotes
e mantilhas pretas
entram espadas chifres e derrotes
e alguns poetas
entram bravos cravos e dichotes
porque tudo o mais
são tretas.

Entram vacas depois dos forcados
que não pegam nada.
Soam brados e olés dos nabos
que não pagam nada
e só ficam os peões de brega
cuja profissão
não pega.

Com bandarilhas de esperança
afugentamos a fera
estamos na praça
da Primavera.

Nós vamos pegar o mundo
pelos cornos da desgraça
e fazermos da tristeza
graça.

Entram velhas doidas e turistas
entram excursões
entram benefícios e cronistas
entram aldrabões
entram marialvas e coristas
entram galifões
de crista.

Entram cavaleiros à garupa
do seu heroísmo
entra aquela música maluca
do passodoblismo
entra a aficionada e a caduca
mais o snobismo
e cismo...

Entram empresários moralistas
entram frustrações
entram antiquários e fadistas
e contradições
e entra muito dólar muita gente
que dá lucro as milhões.

E diz o inteligente
que acabaram as canções.


"Tourada", Ary dos Santos

terça-feira, outubro 03, 2006

segunda-feira, outubro 02, 2006

Riscos


imagem

Nas ruas, as árvores recolhem as folhas, porque na passagem dos dias, os riscos apontam circunferências enormes, traçadas por compassos nas folhas de papel, aonde, por exigência real, as vagas aumentam o tamanho. Nas janelas das vizinhas, enquanto umas esperam despiste, outras riem de prazer; há umas que sorriem…É um risco. A divisão do riso ao sorriso. Outro risco.
Temos disto. Os riscos de pessoas com narizes desapontados e dedos mindinhos grandes inclinados no ângulo dos nossos olhos tristes, porque a tabuada insiste num jogo de cartas batoteiro, onde o jogador, o senhor do canto, que veste casaco de menina e, por acaso, tem as unhas pintadas, cofia o bigode basto em riscos de sujidade. Os riscos dos olhos dele, as mãos riscadas de tinta e o ar de risco, espevitado como um grão de arroz que, por distracção, deixamos perder na placa do fogão, entre duas garfadas, para revirar o peixe e as batatas dentro do caldo. Os riscos do mar sorridente, porto adentro, como uma criança contente com a chegada do pai. Os riscos dos cabelos deles e delas e as marrafas riscadas, certas e pontiagudas, como as asas dos meninos de bibe, em fila indiana, a caminho do jardim, em passeio outonal. Os riscos nas suas mochilas, autênticos autógrafos de um tempo por preencher nos seus cadernos do Homem-Aranha.
Falta traçar o risco debaixo, o do convés. Não risques o chão com esses sapatos. Tira as mãos, não risques o vidro! Risca aqui. Risca acolá. Olha que se riscas isso, eu risco-te da minha lista de aniversário. (Corro o risco de não acabar isto). A minha vida toda riscada. Linhas, agrafos, letras, qualquer coisa de indiferente, que me fica, que me pertence, como as pegadas nas areias das praias dos Açores riscadas nos mapas. Riscos. Os riscos das borboletas. O riscar da caneta na folha branca e cansada. O risco da chave. O som do risco. O risco das gaivotas no céu, voando, de asas abertas. (O risco de me tornar repetitiva). À noite, quando chove, ou por acaso, o vento toma ares de maldisposto; à noite, quando a lua desaparece, as estrelas não chegam a vir e o ar não promete bom tempo, tomo no meu colo o risco de escrever e, então, balançando na corda do sono, naquele adormecer que não chega, risco-te, traço a traço, linha a linha, uno-te até tomares forma e seres isto.
Eu não me esqueço.

Nota de Abertura, Suplemento de Cultura Açoriano Oriental (27/09/2006)