segunda-feira, outubro 02, 2006

Riscos


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Nas ruas, as árvores recolhem as folhas, porque na passagem dos dias, os riscos apontam circunferências enormes, traçadas por compassos nas folhas de papel, aonde, por exigência real, as vagas aumentam o tamanho. Nas janelas das vizinhas, enquanto umas esperam despiste, outras riem de prazer; há umas que sorriem…É um risco. A divisão do riso ao sorriso. Outro risco.
Temos disto. Os riscos de pessoas com narizes desapontados e dedos mindinhos grandes inclinados no ângulo dos nossos olhos tristes, porque a tabuada insiste num jogo de cartas batoteiro, onde o jogador, o senhor do canto, que veste casaco de menina e, por acaso, tem as unhas pintadas, cofia o bigode basto em riscos de sujidade. Os riscos dos olhos dele, as mãos riscadas de tinta e o ar de risco, espevitado como um grão de arroz que, por distracção, deixamos perder na placa do fogão, entre duas garfadas, para revirar o peixe e as batatas dentro do caldo. Os riscos do mar sorridente, porto adentro, como uma criança contente com a chegada do pai. Os riscos dos cabelos deles e delas e as marrafas riscadas, certas e pontiagudas, como as asas dos meninos de bibe, em fila indiana, a caminho do jardim, em passeio outonal. Os riscos nas suas mochilas, autênticos autógrafos de um tempo por preencher nos seus cadernos do Homem-Aranha.
Falta traçar o risco debaixo, o do convés. Não risques o chão com esses sapatos. Tira as mãos, não risques o vidro! Risca aqui. Risca acolá. Olha que se riscas isso, eu risco-te da minha lista de aniversário. (Corro o risco de não acabar isto). A minha vida toda riscada. Linhas, agrafos, letras, qualquer coisa de indiferente, que me fica, que me pertence, como as pegadas nas areias das praias dos Açores riscadas nos mapas. Riscos. Os riscos das borboletas. O riscar da caneta na folha branca e cansada. O risco da chave. O som do risco. O risco das gaivotas no céu, voando, de asas abertas. (O risco de me tornar repetitiva). À noite, quando chove, ou por acaso, o vento toma ares de maldisposto; à noite, quando a lua desaparece, as estrelas não chegam a vir e o ar não promete bom tempo, tomo no meu colo o risco de escrever e, então, balançando na corda do sono, naquele adormecer que não chega, risco-te, traço a traço, linha a linha, uno-te até tomares forma e seres isto.
Eu não me esqueço.

Nota de Abertura, Suplemento de Cultura Açoriano Oriental (27/09/2006)

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