sexta-feira, dezembro 22, 2006

CARTA

“ (…) não devemos malquerer às mitologias assim,
porque são das pessoas
e, neste assunto de pessoas,
amá-las é que é bom(…)”
(
Herberto Hélder, in Revista Via Latina, 1991)

Querido.
Começo por te chamar querido, porque o és e, também, porque acredito que, sempre que quisermos chamar isso aos outros devemos fazê-lo, sob pena de perdermos a vez. A seguir, quero saber se estás bom e se passaste bem o ano, que está quase a acabar?
Pode que me respondas. Pode que me escrevas outra carta. Portei-me bem este ano. (Ponto).
Eu gosto tanto de receber uma carta, de abrir o envelope e ver as palavras todas arrumadas nas linhas. Gosto de desfiá-las uma a uma, como contas de um rosário ou, então ervilhas ou, ainda, pequenas pérolas de um colar rebentado há muitos anos na garagem da avó. Guardado como um segredo. (As pérolas caindo no chão como lágrimas. Fazendo aquele som, que só as onomatopeias sabem pronunciar).
Agora, sim, depois de tudo isto; de te perguntar pelo ano passado e o novo, de te dizer que me portei bem e de divagar um bocadinho como quem saltita num rolo de fita e agarra a rima num golpe de esgrima; passava a dizer-te como foi bom receber resposta às cartas que te escrevi ano após ano. Cartas para todos os gostos. Cartas sem linhas. Linhas com cartas. Cartas com quadrados; cartas enquadradas; cartas cortadas; incompletas; repetitivas. Os rebuçados que te mandei nas cartas. As gamas e as cores dos tecidos das saias e das blusas para as minhas bonecas; a lista infindável de nomes de livros e discos. Muitas cartas. A todas elas tive resposta em 1994. Tinha 18 anos. E, por falar em idades e datas, lembrei-me dos anos da Rosa.
Não sei se algum dia a Rosa te escreveu uma carta. Mas, conhece-la de certeza. A Rosa fez 100 anos o mês passado e apareceu muito bonita a falar na Televisão, com o seu sorriso grande e brilhante; onde sempre soube, que se lhe pedisse, cabia lá por inteiro. Talvez tenha sido a primeira vez, que a Rosa falou de si. Ela, que como explicou à senhora jornalista que a entrevistou: “nunca fez mal a ninguém”. E depois, não sei se viste (?), “bailhou” a Chamarrita. Tenho saudades do tempo de vigia da Rosa; da época, em que ela te substituía na tarefa de ver se nos portávamos bem. Eu, os meus irmãos e primos. (Minha querida Rosa. Digo). E lembro-me dela na Televisão e imagino-a nas ruas para cima e para baixo. Os seus óculos de massa, o lenço sempre na cabeça, o casaco de malha, a sua passada curta e um amor, um amor muito grande para dar sem “fazer mal a ninguém”.
Não quero parecer-te muito desorganizada por andar sempre atrás e adiante, mas ainda antes de recuar a 1994, quando me mandaste a carta escrita, a resposta a todas as outras cartas de há anos, naquele dia chuvoso e triste, deixa-me falar-te da primeira boneca que eu tive: a “Joana”. Não sei se te lembras? Deste-ma em 1979 e ela caiu de cima do sofá de casa do avô para o chão e ficou logo sem tomar leite. Tive que ta devolver. Voltou, meses depois, como nova. Fui buscá-la a casa dos avós, numa caixa, que imitava uma caminha e tinha um laço vermelho. Era linda. Ainda a tenho. Pode ser que o bebé que chega para o ano queira brincar com ela. Não sei. Se não quiser, pode brincar com o mini vermelho, que me deste, quase igual ao do pai, que era branco, ou então, com a bola de lã vermelha, que me ofereceste, quando nasceu o meu irmão. (Uma bola à Benfica). (Como vês, 2006 tem sido um ano de emoções). Voltando, a 1994 e à resposta da tua carta escrita em papel reciclado, uma folha. Foi um consolo. Abri-la e ler-te. Saber que não te vendo, estavas lá tu a ver-me. Saber que me ouvias, que me vias, que me lias; saber o que procurava há tantos anos. E, agora, deves estar a perguntar a ti próprio o que me leva, passados 12 anos, a escrever-te esta carta?
Tenho que me voltar a lembrar como é que se voa a fingir? Onde moram as fadas que curam as doenças? De que cor são os casacos dos duendes? Quem é a Carochinha? Como é que eu chego à lua?
E sei, que a estas perguntas, só tu me podes responder.
De modo que, a carta que me escreveste em 1994 e que era uma resposta a todas as que te enviei, desde 1978; primeiro com a letra da mãe e depois com a minha, vinha escrita pela tua mão e era curta e enorme ao mesmo tempo. Chegou num dia triste de Inverno. Ainda não era Natal. “Querida. Existe e Insiste. Um beijo do velho de Natal.” (Janeiro, 1994). A carta era esta.
Por isso, estou, com a devida distância - como o poeta -: “Com medo de o perder nomeio o mundo (…)” (Vitorino Nemésio) e é esta a razão para te escrever. (Simples, parece-me). Preciso de saber tudo o que já te disse e mais coisas. Onde se encontram as poções mágicas do Asterix e os espinafres do Popeye? As estrelas dormem?
Preciso de saber (também isto) para continuar a existir e a insistir. Por isso, aqui estou e aqui deixo escrito: com medo de te perder, nomeio-te: Querido Velho de Natal. (E chamo-te “querido” para não perder a vez )…

Texto publicado no dia 22 de Dezembro de 2006, jornal Açoriano Oriental, Suplemento de Natal

3 comentários:

carlos disse...

...escapou uma gralha: "Pode (ser)que o bébé que chega para o ano queira brincar com ela". Parabéns, se for esse o caso, e Boas Festas.

Mariana Matos disse...

Sim, tens razão. Adaptei o tom coloquial de origem picarota. Obrigada.
é o caso. Esperamos um/a bébé.
Vou ser tia. Como o André Bradford, não sabemos o sexo. Mas, quase de certeza que vai ser Benfiquista! ;)

Anónimo disse...

Adorei o teu texto! Aliás, adoro sempre os teus textos! :P
A tua carta está fantástica!

Beijo e Feliz Natal!