terça-feira, outubro 30, 2007

Outubro



Se não fosse o mar de Inverno a rebentar nos olhos das pessoas e o tempo a parecer que morre nas mãos mais depressa do que há três meses; se não fosse a chuva a escalar-nos a cara, de volta a baixo como as lágrimas de riso ou de tristeza (mais vagarosas as últimas) diria que talvez pudessem ainda ser inventadas novas formas de escrever Outubro. Mas, o mês é isto. Uma tonalidade amarela enche-nos a memória e os dias passam depressa até ao Novembro, que ameaça ser mais rijo (ou mais valente). Agora todas as folhas caídas destoam da cor dos passeios e, quando chegam ao chão fazem o barulho das palmas. Como, por vezes, acontece no Teatro, quando se acabam os papéis e cai o pano.
Dezembro não tarda e trará com ele o vermelho dos baldes da praia, onde antes era possível guardar o mar e uma praia inteira de castelos e conchas e, de quando em vez, pequenos reis (só de brincar). A mão da minha mãe a apertar a minha, o pé do meu pai calçado no chinelo e o vento de outro Outubro a levar-nos pelo ar.
Para o Suplemento de Cultura de Outubro convidei os colaboradores: Susana Rosa, Renata Botelho, João Henriques, Nuno Martins, Mário Homem; Alexandre Pascoal e Célia Machado. Destaco na agenda o Festival de Cultura, que decorre na Ilha Terceira – Outono Vivo – até ao dia 4 de Novembro; a Exposição de Eduardo Nery, no Centro Cultural da Caloura e a Exposição de Nina Medeiros na Academia de Artes.
Por fim, dedico este Suplemento aos que fazem anos hoje.
Boas Leituras e até Novembro.


Nota de Abertura, Suplemento de Cultura do jornal Açoriano Oriental, a 30/10/2007.

domingo, outubro 28, 2007

Muz´ka

-tiro ao álvaro.mp...


"Tiro ao Álvaro"
Elis Regina
Barbosa Adoniran

sábado, outubro 27, 2007

Croniqueta L ou o Fífia vai tornar-se Bailarino do Asfalto




imagem


O Fífia lembra um cuco pendurado na porta de um relógio antigo, largo das molas, de asa caída e bico torcido para baixo. Se fosse um objecto não era um alicate. Se fosse um segredo não era um cofre. Era o contrário de um e de outro. Talvez um cadeado aberto sem código ou uma pá de batedeira; quiçá um envelope aberto ou uma torneira de quintal pingando a cada três segundos. Boiando dentro de si próprio, o nosso Fífia chega agora no fim do mês; suspenso de si mesmo, como um suplente, abraçando-se às poeiras do desconhecido, qual D. Sebastião ou Quixote do novo século. Iluminado dos pés, mas escurecido da face, o Fífia lembra uma “Joaninha” romântica de umas Viagens narradas em pleno século XIX. Preso à janela da sua própria vida, o Fífia espreita, acena, gesticula e cochicha, mas não se atreve a por pé fora da soleira da porta do casebre que o abriga. Corajoso!
Na livraria, ao Domingo, levado pela mão da Ivéti, de quem nunca arriscou separar-se, mesmo passados estes anos todos, compra os livros que estão no Top. E trá-los todos dentro dos sacos de uma só vez, enfileirando-os nas prateleiras da sala, como troféus. A literatura, como a música ou a pintura, são para ele, nada mais, nada menos, do que poderosos apêndices do saber adquirido por pagamento. Nada de conhecimento, pesquisa ou procura. “Dá muito trabalho”, pensa, mas não diz. Agora, vai comprar uma bicicleta para circular na cidade; pedalada acima, pedalada abaixo, entre os carros, cheio de “speed”, como se fosse uma ave veloz. Já comprou ténis abotinados com botões, porque não sabe dar laços e fato de treino de calças largas. A partir de Novembro, vai ser uma alegria. A mãe e as tias vão construir-lhe uma cesta para levar a Ivéti e transportar o rádio para ouvir todas as notícias de meia em meia hora. Nem pode esperar pelo dia em que escorregará nas ruas asfaltadas do centro da cidade; sentir-se como o bailarino que sempre sonhou ser. Um “bailarino do asfalto” leve e solto, como as palavras que soletra pausadamente como se fossem versos de um poema. Parecem versos, mas não são. Cidadão e filho da terra e da mãe, o Fífia fará uso do asfalto novo que “coroa” as ruas da cidade, como se de uma graça se tratasse. E, quando o virmos deslizando, enfiado no fato de treino vermelho, transportando a Ivéti e o rádio de antena em forma de palhinha, a gente quase que se esquecerá do olhar perdido dos condutores dos carros enfileirados nas ruas asfaltadas da cidade, secos de esperar que caia o verde…

terça-feira, outubro 23, 2007

José Cardoso Pires, caçador de enigmas



“Quando um escritor escreve um livro não quer que a história dê para contar, quer que dê para pensar”, escreveu Maria Lúcia Lepecki na conferência intitulada “Sobre José Cardoso Pires”, integrada na obra, que homenageia este escritor português do Século XX, intitulada: “Actas do 3º encontro de Professores de Português – A língua mãe e a Paixão de Aprender”. O livro, que escolho, nesta crónica, para recomendar chama-se O Delfim. Uma obra que tem, na minha opinião, a grande mais valia de não conduzir os leitores a um desfecho pontual, mas sim de levá-los a pensar como foi elaborada a trama e quais os papéis que o autor lhes estendeu na palma das mãos para que o lessem, estudassem e pensassem. Não esperar, por isso, que o autor ofereça o corpo do texto sem nenhum desafio é a lição primeira. Não esperar que a história aqui narrada se conte sem “pedir” nada em troca é a lição segunda.
O epíteto “caçador de enigmas” que uso para título desta crónica aparece porque penso que, para além da “caça” que está na implícita na acção do texto, ela está também presente como substantivo de atenta e cuidadosa procura; tornando-se mote de escrita do romance. José Cardoso Pires, o autor, é, assim um caçador; o sujeito que de caneta em punho vai enrolando o leitor, enquanto espalha personagens por dentro de histórias múltiplas que se sucedem e encadeiam tal qual como num enigma, que é, tão só, o mote da leitura. E, como não há duas sem três, entender que em cada leitura deve o leitor ter sempre presente a noção de que o autor procurou criar um leitor aberto às inovações do discurso, quer ao nível da técnica da escrita, quer ao nível dos conteúdos ficcionais é a lição terceira.
O livro permite seguir a linha do pensamento do escritor. Sabemo-la circular como a “lagoa”. Circular como um olho, a pedir que a leitura seja atenta, pausada e, sobretudo, pensada.
José Cardoso Pires nasceu em São João do Peso, em Vila do Rei, a 2 de Outubro de 1925. Foi oficial da Marinha Mercante, jornalista, redactor. Colaborador de várias publicações entre as quais a revista Almanaque, Diário de Lisboa, Gazeta Musical e Todas as Artes, Revista Afinidades. Escreveu mais de uma dezena de livros, dos quais se destacam, além da obra supracitada, as reconhecidas obras de arte: “Balada da Praia dos Cães”; “ De Profundis Valsa Lenta”; “Lisboa, livro de bordo”, entre outros. Algumas das suas obras, como “ O Delfim” foram adaptadas para o cinema. Ganhou em 1998, ano da sua morte, o Grande Prémio da Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores.
Termino, citando-o: “(…) Aqui tens, José, o homem que te interroga. Que te fuma e te duvida. Que te acredita. E com esta me despeço, adeus até outro dia, e que a terra nos seja leve por muitos anos e bons neste lugar e nesta companhia. Pá, apaga-me essas rugas. Riscam o espelho, não vês?” (in Cardoso Pires por Cardoso Pires, entrev. de Artur Portela, 1ª edição, Publicações D. Quixote, 1991, 124 p., pp. 89-94”

domingo, outubro 21, 2007

sexta-feira, outubro 19, 2007

Citação (importante)

anotações...



"(...)In the face of a society that seems to unquestionably accept the deterioration of our modern quality of life, Carfree Cities is a beacon of sanity that offers a starting place to discuss practical solutions to the danger, pollution and breakdown of social systems which are a direct result of autocentrism. By rejecting the assumption that continued car use in cities is inescapable, Crawford takes us one step closer to the tantalizing possibility of returning to the natural human pattern of lively and productive street life enjoyed for thousands of years, and disrupted just 70 years ago with the advent of automobiles."

Daqui com mais anotações em www.carfree.com

quarta-feira, outubro 17, 2007

Comienza un Lunes

«La eternidad por fin comienza un lunes
y el día siguiente apenas tiene nombre
y el otro es el oscuro, el abolido.
Y en él se apagan todos los murmullos
y aquel rostro que amábamos se esfuma
y en vano es ya la espera, nadie viene.
La eternidad ignora las costumbres,
le da lo mismo rojo que azul tierno,
se inclina al gris, al humo, a la ceniza.
Nombre y fecha tú grabas en un mármol,
los roza displicente con el hombro,
ni un montoncillo de amargura deja.
Y sin embargo, ves, me aferro al lunes
y al día siguiente doy el nombre tuyo
y con la punta del cigarro escribo
en plena oscuridad: aquí he vivido.»


Eliseo Diego (1920/1994)

sexta-feira, outubro 12, 2007

Muz´ka

Possibilidades

«Prefiro cinema.
Prefiro os gatos.
Prefiro os carvalhos nas margens do Warta.
Prefiro Dickens a Dostoievski.
Prefiro-me gostando dos homens
em vez de estar amando a humanidade.
Prefiro ter uma agulha preparada com a linha.
Prefiro a cor verde.
Prefiro não afirmar
que a razão é a culpada de tudo.
Prefiro as excepções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro conversar com os médicos sobre outra coisa.
Prefiro as velhas ilustrações listradas.
Prefiro o rídiculo de escrever poemas
ao rídiculo de não os escrever.
No amor prefiro os aniversários não redondos
para serem comemorados cada dia.
Prefiro os moralistas,
que não prometem nada.
Prefiro a bondade esperta à bondade ingénua demais.
Prefiro a terra à paisana.
Prefiro os países conquistados aos países conquistadores.
Prefiro ter objecções.
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro os contos de fadas de Grimm às manchetes dos jornais.
Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.
Prefiro os cães com o rabo não cortado.
Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros.
Prefiro as gavetas.
Prefiro muitas coisas que aqui não disse,
a outras tantas não mencionadas aqui.
Prefiro os zeros à solta
a tê-los numa fila de algarismo.
Prefiro o tempo do insecto ao tempo das estrelas.
Prefiro isolar.
Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando.
Prefiro levar em consideração até a possibilidade
do ser ter a sua razão.»

Wislawa Szymborska
poema incluído na antologia: Rosa do Mundo - 2001 Poemas para o Futuro, Assírio & Alvim, Porto, 2001, pág. 1614.

quinta-feira, outubro 11, 2007

Amor




"Brindemos aos que nasceram para ouvir."

domingo, outubro 07, 2007

Postal Pintado


Do coração se perde o traço
como se ao espaço breve da expressão - pertencer a alguma coisa -estivesse atado
um lenço branco com raízes de chuva e ilhas de vento para não doer mais esta coisa de se ser do meio do mar desarmado ou desalmado.
No refúgio quase inesgotável do que se escreve, há um eco sonoro, alto e farto que berra dentro como um grito queimado, apagado por um sopro infantil de quatro velas num bolo.
Batemos palmas, sorrimos e o coração sem traços não se desfia, porque é de pedra e dentro guarda um tesouro secreto.

sábado, outubro 06, 2007

Recomendação de Leitura



"(...) Ao contrário do que acontece com o futuro, não podemos "escolher" o nosso passado cultural biográfico; podemos esquecê-lo num gesto de amnésia histórica; podemos reconstruí-lo de modo a que se adeqúe aos nossos interesses presentes; ou podemos condensá-lo no presente; a fim de demonstrar a continuidade da tradição cultural como parte da confluência de uma história partilhada. (...) O passado cultural é uma presença incubatória nas nossas vidas (Gramsci): vivemos com ele ou de acordo com ele, conversamos com ele continuamente, e embora a forma como vemos o passado se modifique, ou o diálogo possa desenvolver-se de modos inesperados, o passado torna-se "nós", tal como o futuro nos toma.(...)"

"Ética e Estética do Globalismo: Uma Perspectiva Pós-Colonial", Homi K.Bhabha, pp. 29 e 30, recensão incluída na obra a urgência da teoria, resultante das conferências do Forum Cultural: Estado do Mundo, uma das iniciativas dos 50 anos da Fundação Calouste Gulbenkian. A obra contém as conferências de Homi K. Bhabha, Andy C. Pratt, Antonio Cicero, Bernard Stiegler, Danièle Cohn, Daniel Miller, Filipe Duarte Santos, Marc Ferro, Medhi Belhaj Kacem, Miguel Vale de Almeida, Paul D. Miller, Paul Gilroy e Pedro Magalhães.
Recomendo.


AAVV, a urgência da teoria, Lisboa, Tinta da China, 2007.
à venda na Livraria Solmar, 15 euros.

sexta-feira, outubro 05, 2007

quarta-feira, outubro 03, 2007

Muriel

«Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
Numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho da manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou
Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid
havia as ruas as pessoas o anonimato
os bares os cinemas os museus
um dia vi-te e desde então madrid
se porventura tem ainda para mim sentido
é ser solidão que te rodeia a ti
Mas o preço que pago por te ter
é ter-te apenas quanto poder ver-te
e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te
Sou muito pobre tenho só por mim
no meio destas ruas e do pão e dos jornais
este sol de Janeiro e alguns amigos mais
Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te
Eu aprendi a ver a minha infância
vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweet hunters
que esta noite vi no cinema rosales
Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
E penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não
Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido
No fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serrano
sensivelmente em frente daquele bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros
Talvez pensasse que naqueles encontros
em que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes
Isso era por exemplo o que me acontecia
quando há anos nas manhãs de roma
entre os pinheiros ainda indecisos
do meu perdido parque de villa borghese
eu via essa mulher e esse homem
que naqueles encontros pontuais
Decerto não seriam tão felizes como neles eu
pois a felicidade para nós possível
é sempre a que sonhamos que há nos outros
Até que certo dia não sei bem
Ou não passei por lá ou eles não foram
nunca mais foram nunca mais passei por lá
Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se madrid existiu
Se portanto chegares tu primeiro porventura
alguma vez daqui a alguns anos
junto de califórnia vinte e um
que não te admires se olhares e me não vires
Estarei longe talvez tenha envelhecido
Terei até talvez mesmo morrido
Não te deixes ficar sequer à minha espera
não telefones não marques o número
ele terá mudado a casa será outra
Nada penses ou faças vai-te embora
tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templos
e que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão de escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda
Dizia que ao chegar se olhares e não me vires
nada penses ou faças vai-te embora
eu não te faço falta e não tem sentido
esperares por quem talvez tenha morrido
ou nem sequer talvez tenha existido.»

terça-feira, outubro 02, 2007