"E um dia os homens descobrirão que esses discos voadores estavam apenas estudando as vidas dos insectos..." Mário Quintana
sábado, outubro 27, 2007
Croniqueta L ou o Fífia vai tornar-se Bailarino do Asfalto
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O Fífia lembra um cuco pendurado na porta de um relógio antigo, largo das molas, de asa caída e bico torcido para baixo. Se fosse um objecto não era um alicate. Se fosse um segredo não era um cofre. Era o contrário de um e de outro. Talvez um cadeado aberto sem código ou uma pá de batedeira; quiçá um envelope aberto ou uma torneira de quintal pingando a cada três segundos. Boiando dentro de si próprio, o nosso Fífia chega agora no fim do mês; suspenso de si mesmo, como um suplente, abraçando-se às poeiras do desconhecido, qual D. Sebastião ou Quixote do novo século. Iluminado dos pés, mas escurecido da face, o Fífia lembra uma “Joaninha” romântica de umas Viagens narradas em pleno século XIX. Preso à janela da sua própria vida, o Fífia espreita, acena, gesticula e cochicha, mas não se atreve a por pé fora da soleira da porta do casebre que o abriga. Corajoso!
Na livraria, ao Domingo, levado pela mão da Ivéti, de quem nunca arriscou separar-se, mesmo passados estes anos todos, compra os livros que estão no Top. E trá-los todos dentro dos sacos de uma só vez, enfileirando-os nas prateleiras da sala, como troféus. A literatura, como a música ou a pintura, são para ele, nada mais, nada menos, do que poderosos apêndices do saber adquirido por pagamento. Nada de conhecimento, pesquisa ou procura. “Dá muito trabalho”, pensa, mas não diz. Agora, vai comprar uma bicicleta para circular na cidade; pedalada acima, pedalada abaixo, entre os carros, cheio de “speed”, como se fosse uma ave veloz. Já comprou ténis abotinados com botões, porque não sabe dar laços e fato de treino de calças largas. A partir de Novembro, vai ser uma alegria. A mãe e as tias vão construir-lhe uma cesta para levar a Ivéti e transportar o rádio para ouvir todas as notícias de meia em meia hora. Nem pode esperar pelo dia em que escorregará nas ruas asfaltadas do centro da cidade; sentir-se como o bailarino que sempre sonhou ser. Um “bailarino do asfalto” leve e solto, como as palavras que soletra pausadamente como se fossem versos de um poema. Parecem versos, mas não são. Cidadão e filho da terra e da mãe, o Fífia fará uso do asfalto novo que “coroa” as ruas da cidade, como se de uma graça se tratasse. E, quando o virmos deslizando, enfiado no fato de treino vermelho, transportando a Ivéti e o rádio de antena em forma de palhinha, a gente quase que se esquecerá do olhar perdido dos condutores dos carros enfileirados nas ruas asfaltadas da cidade, secos de esperar que caia o verde…
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