quarta-feira, março 01, 2006

Carta ou Canção para um Poeta Ausente






Querido Emanuel,

Desculpa o afectuoso [querido]. Porém, estou certa, que não será ele, o causador da tua zanga, pior seria se como escreveu Michel Foucault eu, ao longo deste texto, repetisse “ a afirmação oca de que o autor desapareceu”, (O que é um autor? p.41). Isso já todos sabemos. Então como te escreverei diferente dos que já te escreveram? Já tantos falaram de ti. Já tantos te teceram loas e tão bonitas, que eu não sei se consigo, mas vou tentar… Quero escrever-te para que te leiam os leitores deste suplemento. Não quero traçar-te em metáforas, sublinhar-te termos, encher-te de quês e porquês; sentar-te no tempo, esticar-te todo, esperar-te ao canto, fazer-te uma finta e depois, deixar-te cair, a ver se entras, direitinho, na minha interpretação. No final, encher-te de predicados e adjectivos e dizer que foste o maior poeta que o mundo viu nascer. Não. Não quero nada disso. Se assim fosse, preferia que esta página ficasse em branco…
Então, deixa-me lembrar-lhes o teu sorriso. Um sorriso bonito. Apareces aqui por casa em fotografias de jornais e revistas que o pai e a mãe guardam. Pareces um navio.
Grande, enorme, atravessando o mar na “hora da nossa morte/na hora da nossa vida” (Tristes navios que passam, p.122). Os poetas, como tu [cá vem o tu atrevido] têm essa condição de permanência e é, talvez por isso, não te tendo conhecido pessoalmente, que me sinto à vontade para te tratar assim.
Querido Emanuel. Meu amigo ou irmão, se entendermos que esta condição de sermos dos Açores, sem que isso possa implicar, um umbiguismo bacoco e envergonhado, mas antes nos faça irmãos de sangue: "Sigamos a lição/Destas flores de lume/Que valem pelo que são/ e não por um perfume." (Dálias, p.62).
Assim estás tu, valendo pelo que és. Aqui, na minha secretária, do lado direito, em 121 Poemas Escolhidos, dizes: “Somos herdeiros dos quatro ventos/Sem uma vela para lhes dar/Temos amarras e temos lenços/Num cais de pedra para acenar ( Náufragos Tranquilos, p. 131). Somos não somos? Sempre tive essa ideia de que mesmo que façamos parte dessa outra história que me dizes aqui: “ (…) absoluto obsoleto medo filho por vir/o loiro infante o instante/ todo o alcácer – quibir” (A Palavra o Açoite, p. 124) somos Náufragos Tranquilos. Habituados ao “rombo aberto no nevoeiro secular” ( Náufragos Tranquilos, p 131).
Mas, Emanuel, vou tentar explicar aos possíveis leitores deste suplemento o que é que este livro tem de especial. Começa por ter 121 poemas escolhidos. É castanho e foi editado pela Salamandra. Os 121 poemas foram escolhidos por ti. É um livro de amor e amizade com tudo dentro, direi eu, esperando que concordes comigo. Tem letras dentro. Escolhidas para as dedicatórias e para as sombras, para as raparigas e para as flores, para a casa, a batalha, o segredo e a pedra. É um livro de Poesia. Deve ler-se devagar como quem mastiga…
Querido Emanuel. Acabo, quase, como comecei, escrevo-te desta minha pedra chamada minha casa que, há mais de 25 anos, o meu pai e os meus tios construíram na freguesia da Fajã de Baixo. É Domingo. Lá, em baixo a minha mãe frita malassadas, porque é Carnaval, enquanto o meu pai e o meu irmão se preparam para assistir ao Benfica - Porto.
Por aqui me fico fazendo votos de que gostes deste texto e de que as pessoas que, eventualmente, o lerem, acabem por adquirir o teu livro numa livraria.
Termino, citando-te:
““Sei que perdoas a simplicidade do tratamento/porque a morte é bem isto; uma coisa que tudo simplifica (…)” (Meu Adeus a Martinho, p. 121).
Obrigada Emanuel.


Fajã de Baixo, 26 de Fevereiro de 2006


* Todos os poemas citados ao longo deste texto estão incluídos no livro “121 Poemas Escolhidos” editado pela Salamandra no ano de 2003.

[Texto Publicado no Suplemento de Cultura nº 10, hoje, no Açoriano Oriental]

1 comentário:

Caiê disse...

E era um senhor que gostava imenso de gatos! :)