"E um dia os homens descobrirão que esses discos voadores estavam apenas estudando as vidas dos insectos..." Mário Quintana
terça-feira, fevereiro 12, 2013
Morreste-me
É muito difícil escrever sobre a vida ou sobre a falta dela, sobre o que nos morre, quando morre alguém de quem gostamos muito, ou quando morrem coisas em que acreditávamos muito. É por isso que admiro os escritores Philip Roth e José Luís Peixoto.
O primeiro, porque escreveu um livro sobre o património humano – além dos museus, das igrejas e das bibliotecas – deixado pelo pai, num tom sensível, impressionantemente verdadeiro e cruel, na espera angustiosa da morte que havia de chegar, num dia qualquer, ou nos frios corredores dos hospitais, ou no carro ou no caminho de casa…
Escrever sobre a morte pode tomar rapidamente forma de lamechice, porque não há (ou não havia) muito mais a dizer, mas aqui existe, está lá, em cada página, a identificação constante entre quem lê, tendo passado por isso, e quem escreve coisas como, por exemplo, esta: “O que os cemitérios provam, pelo menos a pessoas como eu, não é que os mortos estão presentes, mas sim que partiram. Eles partiram e, por enquanto, nós não.”
Perdemos tempo de mais a discutir o evidente, a debater o insignificante, a falar sem ouvir a própria voz, a calar as ausências, a esconder absurdos e um dia morremos num ápice.
A imortalidade das lesmas é uma metáfora (irónica, talvez) mas não deixa de ser tão grande como a nossa própria metáfora. Um dia, não resistimos mais ao passar dos dias e chegamos à forma infinitiva e antónima do verbo viver. Se enquanto vivermos percebermos que tal como as moscas nenhum de nós é imortal pode ser que vivamos melhor. Acho eu.
O outro livro, cujo título escolhi para chamar ao “Serenamente” de hoje é de José Luís Peixoto, publicado em 2000, em edição de autor. “Morreste-me” é um património para a língua e literatura portuguesa, escrito, quase de um fôlego, lido depressa, parece um ensaio sobre a vida e sobre a morte. Sobre a falta de vida e sobre a ligeireza da morte, sobre o que nos morre e o que nos fica, sobre o imaginário e a cruel ausência dos que gostamos mais.
Muito poucos (penso eu) conseguiram escrever assim de forma tão dura, palavras que acabam por nos invadir e fazer pensar (de facto) nesta nossa “insustentável leveza de ser” (Milan Kundera).
Não há ali prazer no sofrimento, nem qualquer espécie de exposição de dor. É tão só e apenas uma dor, a dor de quem se vê, num ápice, sozinho (ou quase) no mundo.
Podem morrer-nos pessoas, desaparecendo ou não, podem morrer-nos ideias, ideais, mas que não nos deixemos morrer antes do tempo parece-me fundamental.
Sem apegos a moralidades ou a moralistas, sem desapego ao que é nosso de dentro, ou de fora, como a carne que nos enforma ou as palavras que escrevemos ou dizemos, o “Serenamente” de hoje vai com dedicatória a quem me morreu mais cedo do que eu julgava que era permitido, que gostava mais da sua gente do que do resto das coisas, que brigava por uma ideia, como eu nunca mais vi ninguém brigar, que tinha a mão que nestes dias mais falta me faz.
Ensinou-me (entre outras coisas) que “Quand le doigt montre la lune, l'imbécil regarde le doigt" (em português: "quando o dedo mostra a lua, o imbecil olha para o dedo") …
É isso que me tem feito segurar nos dias, em que parece que seria mais fácil viver dentro de um aquário, só preocupada com as borbulhas perfeitas que, como peixe (sem cérebro) havia de treinar e fazer…
Let it be…(mother Mary).
Serenamente, AO 12 de Fevereiro
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