domingo, julho 22, 2007

Crónica de Ar(riscar)

Nas ruas, as árvores recolhem as folhas, porque na passagem do dias, os riscos apontam bolas enormes, traçadas por compassos em folhas de papel, aonde, dizem os que sabem, que por exigência do Real, as vagas vão, lentamente, aumentando ou diminuindo o tamanho do medo. Nas janelas das vizinhas, enquanto umas esperam desgraça, outras riem de alegria e algumas, as de lenço vermelho na cabeça, sorriem. É a divisão do riso ao sorriso. Um risco. Temos disto por aí. Riscos de pessoas com narizes desapontados e olhos doces; dedos mindinhos grandes inclinados no ângulo de outros olhos tristes e sós, enquanto, num canto qualquer, a tabuada vai insistindo no gerúndio de um jogo de cartas batoteiro. O jogador cofia o bigode basto em riscos de pó. Tem riscos nos olhos; mãos riscadas de tinta e um ar de quem, por desporto, gosta de correr riscos. Sorte dele. Azar no jogo.
Há qualquer coisa riscada na corrente do mar. As crianças agora que, já é Verão, chegam à praia de cabelos riscados a meio e se a mãe está presente não há riscos para correr, mas há riscos nas mochilas que, acabado o ano lectivo, servem para transportar maçãs, sumos e bolachas; mais os óculos de sol e o mp3. Com sorte, um livro para ler nas férias e, na areia, um Castelo com conchas no lugar das janelas e pedrinhas brancas a fazer de conta que os anos nunca ultrapassaram o encanto ou se sobrepuseram a ele.
Falta traçar o risco debaixo, o do convés. Não risques o chão com esses sapatos. Não risques o vidro. Risca. Apaga. Lava. (Corro o risco de não acabar isto). Linhas, agrafos. Os riscos que as borboletas fazem quando passam rente aos cabelos. Risca a folha. Risca essa palavra. Esta palavra tem risco?
No céu, quando é de noite e sonhamos que, por magia, nos podemos abstrair e morrer por minutos, as gaivotas riscam tudo o que alcançam, como se viesse alguém, apagar aquela luz e é, então, que a lua aparece e as estrelas brilham, porque arriscam.
Escreve-se com riscos endireitados no papel como composições de sons. É, talvez por isso, que as letras são todas diferentes e que, por exemplo, o [o] é um risco enrolado e gordo e o [s] uma linha dobrada e ziguezagueante, como se dançasse e dentro tivesse uma força qualquer teimosa e insistente que, às vezes, mas só mesmo às vezes, nos pode impedir de voar. Os riscos de não tocar com os pés no chão não são sempre maus. São como os riscos do [v]. São de atirar para cima e esperar que voem.

(Correio do Norte, 2ª quinzena de Julho)

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