segunda-feira, abril 30, 2007

Com medo de o perder nomeio o mundo (*)

Aos Sábados, depois de acordarmos da folia da sexta-feira, normalmente passada na casa da filarmónica, ouvindo o ensaio da banda ou comendo chocolates de bico traçado, íamos passear à quinta, onde enquanto apanhávamos laranjas e limões, o avô nos contava histórias de barcos perdidos no mar e passageiros envolvidos em grandes aventuras de resgates e naufrágios. Sentados, debaixo dos limoeiros, nós, a equipa do Benfica (porque somos onze!) ouvíamos aquela velha glória com entusiasmo, querendo saber dos salvamentos e das vezes em que chegaram barcos ao nosso estaleiro para consertar. No fundo, sabíamos que aquele avô, que, aos Domingos, no Verão, depois do almoço, nos partia arroz doce às fatias ou nos fazia sandes de manteiga de amendoim para levarmos para o porto, com “manteiga bastante”, como dizia, era um artista. Um fazedor de barcos. No meu imaginário, passados que são mais de 10 anos, ficaram as bonecas de madeira com olhos de feijão castanho e cabelo de fita ou os barcos, com que o meu irmão e primos brincavam nas poças do pesqueiro alto. Isso, mesmo parecendo que não, contribuiu, em muito para a minha identificação com as ilhas, onde nasci e vivi. Se me pedirem datas, anos, circunstâncias ou mesmo modos para definir a palavra Açores direi que este mundo, que nomeio, porque tenho medo de o perder (parafraseando Nemésio) é um homem, dois; a gente todos nos meus anos, os baloiços de casa da avó Maria, os abraços, os meus irmãos; uma escada, onde me encosto de vez quando em vez, agarrando-me ao tecto da garagem do avô, que aos seis, sete anos, parecia o mar revolto das histórias da quinta. A palavra Açores sou eu, correndo descalça em casa da avó Ana, atravessando o canal na Espalamaca, descendo a avenida Gaspar Frutuoso num carro de pedais, mergulhando no caneiro para ver o fundo do mar. A palavra Açores é um universo de espécie. Não melhor nem pior. Diferente. Espécie de gente, com “ossos mergulhados no mar”, como escreveu Vitorino Nemésio. Os meus Açores mergulham aqui. No meio do mar com coordenadas efectivas ou afectivas. São sujeitos factualmente dispersos pelos manuais de história, descritos nos dicionários e nas enciclopédias, exactos, é certo, mas aqui, neste espaço, onde escrevo as minhas crónicas quinzenais, posso dizer que os meus Açores são eu saltando ao pé coxinho com os meus irmãos e a gente todos de ilha em ilha, como quem desfia a vida, devagarinho, pé ante pé. Os meus Açores são a gente devagar, entre as brumas, as gaivotas e um prato de molha e arroz no Natal, quando debaixo da árvore havia bonecas de madeira com cabelo de fita e um postal da avó Ana.


(*) verso do poema “Nomeio o mundo” de Vitorino Nemésio

Publicada no jornal Correio do Norte (2ª quinzena de Abril)

1 comentário:

Anónimo disse...

Como entendo esta crónica tão linda.

É por esta e outras que te nomeio e tenho o prémio à espera no meu blogue.

Beijinhos