Para alguns dos dias em que estava planeado fazermos campanha de rua, estava decidido que iríamos a algumas freguesias com tintas e placares e pediríamos às crianças que aparecessem, e sempre aparecem, que nos pintassem aquilo que mais e menos gostavam sobre a sua freguesia. Foi uma experiência espectacular, se bem que por vezes caótica.
Nos Fenais da Luz decidimos que o ataque ficaria marcado para o espaço entre o adro da igreja e o coreto, por volta das 17 horas. Quando a caravana, inha, do Bloco chegou, na hora marcada, ao dito cujo lugar não existia vivalma, nem sequer uma única criança desalmada. Esperamos um pouco e ainda passaram alguns homens, uns cansados do dia e outros prontos para começar o turno da taberna. Resumindo, ali não ia dar certo.
Alguém propôs que nos lançássemos ao bairro social não sei dos quantos, mesmo ali nos Fenais. E assim fomos. Quem precisa de crianças nunca sai desiludido de um bairro social.
Enquanto os outros montavam os placares e preparavam as tintas, a Lúcia e eu, fomos dar uma volta pelo bairro para chamar crianças e para aproveitar e meter conversa com algum adulto que aparecesse. As crianças começaram a aparecer como coelhinhos em hora da ração. Quando voltamos tínhamos obtido mas sucesso que a flauta mágica. E o divertido caos começou.
Já para o fim, depois de, por qualquer razão, a Lúcia me chamar pelo meu nome, um rapaz, mesmo ao meu lado, pela altura do meu ombro, vira-se para mim e pergunta:
- O senhor chama-se Tozé?
- Sim senhor!
- Eu também me chamo Tozé. – disse, como se fosse para ele uma honra saber que um “grande” político como eu tinha o mesmo nome que lhe coubera ter.
- Ai sim?!? Eu também me chamo Tozé, sim senhor! E quantos anos tens, Tozé?
- Eu tenho doze. Fiz ontem!!! Fiz ontem doze anos!
- Ena pá!!! Vocês!!! – chamei os outros – Aqui o nosso amigo fez anos ontem! E chama-se Tozé, como eu! – Toda a gente fez um forrobodó e deram-lhe um pouco de atenção devida.
O Tozé ficou envergonhado e corou, mas estava obviamente contente com a atenção dada. Pousei-lhe a mão aberta na cabeça, como quem pega numa bola de andebol, para lhe transmitir de uma forma mais pessoal os meus desejos de felicidade.
- E em que ano estás na escola, Tozé? – continuei a nossa conversa.
- Eu não estou na escola!
- Como é que não estás na escola?!? – disse eu, meio no gozo, pois pensava que o Tozé estava a brincar.
O Tozé encolheu os ombros, como quem procurou uma resposta e não a encontrou. – Não estou na escola!
- Como é que é isso?!?
- Ninguém me quer lá na escola.
Dito daquela forma e com aquela cara, aquela resposta atingiu-me como se tivesse sido atingido por um qualquer feixe de energia atirado por um daqueles monstrinhos dos pokeimon de aspecto terno e simpático. Percebi logo que estava tramado. Ia entrar numa história da qual não me ia conseguir livrar assim sem mais nem menos. Como num filme, a imagem passou a preto e branco e todo o fundo ficou desfocado, ficando focada só aquela criatura à minha frente. Eu já notara que ele estava descalço mas não deduzira mais do que a possibilidade de ser esse o seu modo de estar na brincadeira num fim de tarde ainda quente ou devido à pressa com que, como os outros, saíra de casa para vir connosco pintar o caneco.
O Tozé era gordinho e enquanto esteve ao meu lado esteve sempre com um sorriso na boca. Agora que lhe prestava mais atenção percebi que aquele sorriso era muito simples, simples demais mesmo para uma criança de 12 anos. Reparei também que tinha uma ligeira deficiência motora nos membros do seu lado direito, coisa pouca, mas agora que me concentrara era óbvio.
- Mas tu não queres ir para a escola ou …
- Eu quero! Eles é que não me querem na escola!
- Eles quem Tozé?!?
- Eles! A escola! – a cada resposta encolhia os ombros de uma forma inocente e derrotada.
- Porquê Tozé? Deve haver uma razão! Tu sabes porque é? – ele encolheu os ombros.
- Mas tu queres ir para a escola Tozé? – perguntei com uma voz agora mais baixa e um ar mais sério.
O Tozé respondeu-me que sim, com os olhos, com o sorriso, com a voz, com o corpo por inteiro.
- Lúcia!!! Lúcia! Anda aqui, se faz favor! – a Lúcia veio.
- Lúcia, o meu amigo Tozé, aqui, diz que não está na escola porque ninguém o quer lá…
- O quê?!? – e com isto a Lúcia entrou num estupefacto interrogatório muito parecido com o meu, que ele acompanhou com as mesmas respostas e o mesmo sorriso.
Ambos concordamos que algo não estava certo e que necessitávamos mais informação. A Lúcia foi à casa de onde viera o Tozé tentar falar com um adulto.
Para encurtar e simplificar esta história, o Tozé era na realidade um rapaz com uma deficiência motora e mental. Não conseguira completar os primeiros anos escolares, mas já ultrapassara a idade que lhe permitia manter-se na escola básica local. A escola mais próxima que lhe podia dar apoio escolar era, agora, a escola Canto da Maia. A família não tinha possibilidade de lhe proporcionar transporte e ele necessitava uma atenção mais particular do que o serviço de transporte público lhe podia proporcionar. À família foi aconselhado o serviço de um transporte, que penso, particular, chamado “os Verdinhos”, que lhes pediu uma mensalidade de 200 euros pelo serviço. Estava fora de questão, para a família do Tozé. E assim o Tozé e o seu sorriso estavam condenados a passar os dias no seu bairro social. Com quem? Não sei. Só sei que prometi ao Tozé que se ele queria ir para a escola a gente ia tratar do assunto… Estava tramado…
A Lúcia e a Emanuel, que é professora na Canto da Maia, fizeram equipa e propuseram-se a tratar do assunto. A minha ajuda reduziu-se a, quando nos encontrávamos, perguntar, - Então?!? E o problema do Tozé? - . A verdade verdadinha é que pouco tempo depois a Emanuel em resposta a essa pergunta me respondeu feliz, - É verdade, tinha-me esquecido de te dizer, o caso do Tozé está resolvido! Ele já está na Canto da Maia! - .
E prontos.
4 comentários:
BRAVO!
O melhor exemplo possível do que é fazer política ou de para que servem os políticos.
Grande exemplo, caro primo! ;)
Ah, isto sim, é um serviço à comunidade! ;)
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