terça-feira, maio 28, 2013

"Prefiro ter um pequeno nome na literatura nacional do que ser um príncipe da literatura açoriana" - Daniel de Sá




1944-2013

"UM HINO À VIDA

Nem flor efémera, leve
Como um sorriso perdido.
Nem borboleta tão breve
Que num voo só alcança
O tempo de ter sido,
Num bater de asa que dança.
Nem um até amanhã,
Que amanhã é outro dia,
É dia de outros, mamã,
E com a mesma alegria.
Nem mil beijos ou abraços.
Nem mais passos… nem mais passos…
Nem flores de despedida,
Nem vozes contra o destino.
Só isto: mudei de vida
E serei sempre menino."

Daniel de Sá

À MEMÓRIA DE RUY BELO

À MEMÓRIA DE RUY BELO

Provavelmente já te encontrarás à vontade
entre os anjos e, com esse sorriso onde a infância
tomava sempre o comboio para as férias grandes,
já terás feito amigos, sem saudades dos dias
onde passaste quase anónimo e leve
como o vento da praia e a rapariga de Cambridge,
que não deu por ti, ou se deu era de Vila do Conde.

A morte como a sede sempre te foi próxima,
sempre a vi a teu lado, em cada encontro nosso
ela aí estava, um pouco distraída, é certo,
mas estava, como estava o mar e a alegria
ou a chuva nos versos da tua juventude.

Só não esperava tão cedo vê-la assim, na quarta
página de um jornal trazido pelo vento,
nesse agosto de Caldelas, no calor do meio-dia,
jornal onde em primeira página também vinha
a promoção de um militar a general,
ou talvez dois, ou três, ou quatro, já não sei:
isto de militares custa a distingui-los,
feitos em forma como os galos de Barcelos,
igualmente bravos, igualmente inúteis,
passeando de cu melancólico pelas ruas
a saudade e a sífilis do império,
e tão inimigos todos daquela festa
que em ti, em mim, e nas dunas principia.

Consola-me ao menos a ideia de te haverem
deixado em paz na morte; ninguém na assembleia
da república fingiu que te lera os versos,
ninguém, cheio de piedade por si próprio,
propôs funerais nacionais ou, a título póstumo,
te quis fazer visconde, cavaleiro, comendador,
qualquer coisa assim para estrumar os campos.
Eles não deram por ti, e a culpa é tua,
foste sempre discreto (até mesmo na morte),
não mandaste à merda o país, nem nenhum ministro,
não chateaste ninguém, nem sequer a tua lavadeira,
e foste a enterrar numa aldeia que não sei
onde fica, mas seja onde for será a tua.

Agrada-me que tudo assim fosse, e agora
que começaste a fazer corpo com a terra
a única evidência é crescer para o sol.

© EUGéNIO DE ANDRADE 
Homenagens e outros Epitáfios, 1974 

terça-feira, maio 21, 2013

A dar uma de "Jacinta"



Se Cavaco Silva fosse o devoto que quis parecer ser na passada semana, evocando primeiro Nossa Senhora de Fátima, a propósito do fim da sétima avaliação da troika, e depois São Jorge, referindo-se à vitória do bem sobre o mal, teria aproveitado ontem, 2ª feira do Espírito Santo, para evocar o “Criator Spiritus”.

Mas isso é claro, só podia acontecer se Cavaco não ignorasse que ontem foi “Dia dos Açores” (como bem lembrou Carlos César), 2ª feira do Espírito Santo, e, por causa disso não convocasse o Conselho de Estado para exatamente a mesma data.

Cavaco Silva passou por cima da data, sem sequer ter dirigido umas palavras, circunstanciais que fossem, aos Açores e aos Açorianos. É uma pena lastimável. Mas é o que temos. 

O Presidente da República já nos provou que só sabe de nós quando lhe interessa. Para vir cá falar do sorriso das vacas; para interromper as férias e avisar um país inteiro dos perigos que podia encerrar o nosso Estatuto Político Administrativo…  

Depois recolhe-se à sua religiosidade oportunista, que faz enraivecer o mais sereno cidadão…e corar de vergonha, qualquer um de nós, pelo patético da cena e pelo que ela demonstra (mesmo) de um certo aproveitamento da fé dos portugueses.

De resto, como se provou ontem: silêncio absoluto, que nem foi quebrado pela ausência anunciada e explicada do Presidente do Governo dos Açores na reunião do Conselho de Estado.

Para as sopas do Divino e para os croquetes do resto dos dias, tem cá o Representante da República. Dá (por enquanto) bastante.

Podia ter falado da partilha que o Espírito Santo simboliza, podia até ter ido às raízes monárquicas da cultura portuguesa e falar da Rainha Santa Isabel ou de Afonso Henriques, podia ter usado os conselhos da sua Maria e podia, entre uns e outros reis ou santos, dirigir umas palavras, por mais curtas que fossem, a este povo português das ilhas, que, entre outras coisas, já deu à República a que preside, dois Presidentes: Manuel de Arriaga e Teófilo Braga.

Mas não. Preferiu manter-se reservado aos sagrados do país de norte a sul; recolhido à fé da rendição de Paulo Portas; agarrado à coligação, rezando a todos os santos para que o fio que a sustenta não se rompa. 

Vítor Gaspar que não soma nem segue em Portugal é admirado pelos alemães; o desemprego aumenta, as falências multiplicam-se; a fome desarma famílias inteiras, não temos nenhuma credibilidade para sermos um país a sério.

Nossa Senhora de Fátima substituiu de uma assentada só os esforçados portugueses, cuja penúria, passou de repente a uma espécie de recompensa divina. Foi isso que Cavaco Silva quis dizer, mesmo que depois tenha disfarçado. Temos um Presidente da República que anda pelo país a dar uma de “Jacinta”.

Esperemos pois todos com a paciência possível pela próxima aparição de Cavaco. 

Virá, entre nuvens, fumos e anjos, avisar um mundo novo, quiçá em aramaico.

É tudo uma enorme palhaçada. 

Serenamente, AO hoje

terça-feira, maio 07, 2013

O convidado



Já não nos falta (quase) nada para batermos no fundo. Já aqui escrevi linhas e linhas, a brincar e mais a sério, sobre o estado do país…

Falta-nos alguém com sentido de liderança, alguém que tranque os pés no chão e combata deveras, como se diz em São Miguel. Mesmo deveras.
A última semana trouxe nova novela trágica e cómica. De rir e de chorar. Primeiro Passos Coelho nervoso e inquieto, depois Paulo Portas ufano e medíocre. Ambos à vez a “pregar aos peixes” num discurso surdo, sádico e humilhantemente vergonhoso, cuja única verdade são as políticas que são para aplicar doa a quem doer.

Já chega! Já basta! Já não se vê mais do que braços caídos, olhos cruzados de cansaço. É todos os dias, hora atrás de hora, se não é Passos Coelho, é Vítor Gaspar, se não é Vítor Gaspar, é Paulo Portas; se não é nenhum dos três, é Cavaco Silva, se não é Cavaco Silva é a oposição. Basta!

Um grupo de reformados entrou nas galerias da Assembleia da República e cantou “Grândola Vila Morena”. A Presidente da Assembleia da República considerou que a atitude não ajudava a democracia. Pergunto: teria ajudado a democracia se um, de entre os deputados, tivesse batido palmas aos reformados? Respondo: teria. Eu preferia tê-los visto tomar partido; eu preferia ter ouvido uma voz que quebrasse o gelo daquele momento, dizendo ao grupo de reformados, em manifestação pacífica: “Estou aqui!” Mas não. Silêncio absoluto e mais uma vez humilhantemente vergonhoso.

“Eu não fui eleito coisíssima nenhuma”, disse Vítor Gaspar à deputada Ana Drago. Vítor Gaspar tem esse dom, na relação que tenho com ele, quando penso que já ouvi tudo, ele faz logo questão de me lembrar que pode descer mais um grau na minha consideração, que se não houver grau, ele descobre um e vai mais baixo.

Gaspar provou-me que se orgulha de não ter sido eleito pelo povo português, que se orgulha de ser o mentor de um governo que não tem vergonha de por em prática as políticas que ele inventa. Merecia ser insultado. 

Enquanto Paulo Portas falava aos portugueses, no Domingo, com a frontalidade(zinha) que lhe é reconhecida, diante dos focos e das filmagens, longe do povo, um grupo de populares entrou numa moradia em Leiria e agrediu dois dos habitantes. As razões, não se sabe quais foram, mas sabe-se que os agredidos foram transportados para o hospital mais próximo…e os agressores presos.

Terão (talvez) enlouquecido, o que a continuar a andar o país da forma que anda, sem que ninguém de fibra lhe deite a mão, é perfeitamente possível e até mesmo natural que comece a acontecer por aí. Enlouquecer num lado qualquer, quando menos se espera e gritar: “ Eu não votei em ti coisíssima nenhuma!”

Com uma única, mas crucial diferença: não nos servir de nada…a não ser mudar qualquer coisa em nós.  Ao passo que a Gaspar servirmos para tudo, incluindo para agradecer o convite que Pedro Passos Coelho lhe fez há dois anos, exercendo o seu cargo sem qualquer afecto... (Que fosse afecto. Simplesmente afecto e já era tão bom).


Serenamente, jornal Açoriano Oriental, 7 de Maio de 2013