terça-feira, março 23, 2010

That Feel

Há uma música de Tom Waits de que gosto particularmente. Chama-se “That Feel” e diz, entre outras coisas, que se pode perder as calças, a camisa, os sapatos, mas nunca se pode perder “esse sentimento”.
Ora, vem isto a propósito de um pequeno conto de Mia Couto que começa com uma máxima: “O tempo é um fruto: na medida, amadurece; em demasia, apodrece”.
“Uma questão de honra” narra, em três páginas, a história de dois amigos, de idade avançada, que se juntam à mesma mesa, todos os dias, no mesmo bar para jogar às damas.
Um dia, depois de começarem a jogar, um deles, a quem o jogo não ia correndo bem, entendeu perguntar ao outro se, por acaso, tinha ido ali de noite e mudado o jogo, porque o tabuleiro não lhe parecia igual. O amigo, surpreendido, respondeu-lhe que não. Como não se entendiam sobre o assunto, procuraram, então, um juiz, que lhes explicou que aquela alteração podia ser um “fenómeno”…
Embora não compreendessem muito bem o significado da palavra – “fenómeno”, os dois acharam, que se era dita por um juiz, fazia sentido e foram-se embora. Um convencido que sim, o outro que nem por isso…
A partir da conversa com o juiz, em apenas mais uma página A4 (na versão que li), o escritor entrelaça um enredo à volta da aparente mudança do jogo no tabuleiro, que só acaba com a tentativa de assassinato do juiz, que a um dos amigos falou de “ética” e “homens de bem”. Morre um dos dois amigos. Mata-o o guarda-costas do juiz.
- “É a sua vez, compadre…”é o que se lê, por último, antes de acabar o conto, e passar ao seguinte, assim dito pelo amigo que vivia ainda, à espera do outro, com quem jogava às damas, para passar o tempo da vida…
À parte da trama e do que se pode dizer do livro, que contém outros vinte e oito contos sobre vidas e coisas simples, a história é comovente, porque falando disso e do jogo com regras, escreve tempo e medidas para amadurecer ou apodrecer, deixando nas entrelinhas a escolha do que se possa decidir fazer …
Voltando, ainda ao “That Feel” de Tom Waits, música que foi escrita pelo próprio e por Keith Richards, cuja letra é sobre isso, que é mais difícil de perder do que uma tatuagem, lembrei-me de uma outra curiosa história que me contaram há uns tempos e que é sobre um grande fabricante de calçado, que mandou dois empregados seus a África investigar se valia a pena a sua empresa investir numa fábrica de calçado naquele território.
Para a investigação ser conclusiva, mandou um empregado entrar pelo lado norte do território e o outro pelo lado sul. Passada uma semana recebeu os resultados das duas investigações: o empregado, que entrou pelo lado norte do território concluiu que não valia a pena investir, porque lá não calçavam sapatos e o empregado que entrou pelo lado sul concluiu que valia a pena investir, porque lá não calçavam sapatos. São os chamados diferentes pontos de vista. Baralhados?
Cito Mário Cesariny, a propósito do Dia Mundial da Poesia, que se celebrou a 21 de Março, para acabar esta crónica: “Fique pela parte que me toca, o molde da queda e o valor da experiência: as pessoas sabidas descobrirão depressa onde é que está o logro e onde pode anichar-se a autenticidade. As outras, não sabidas (entusiastas, estas!) servem-me o apetite de dizer para já alguma coisa que o poema não diz:
Que Fernando Pessoa é um grande poeta. Viajou sempre em primeira classe, mesmo quando estava parado.”
Não perder a poesia das coisas é essencial (António Lobo Antunes diria que há uma ordem natural para elas). Mas, ainda há outra coisa que não se pode perder, é claro: “That Feel”, mesmo que haja sempre alguém inquieto para mudar o jogo no tabuleiro, de noite, enquanto dormem os homens de bem e outros discutem sobre sapatos…

AO, Serenamente, 23/03/2010

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