terça-feira, julho 07, 2009

João & José

José escrevia homens e mulheres sentados. Sentados e incomodados com a presença dos outros. Sentados e muito calados. Sentados e muito direitos. Sentados com as pernas muito direitas e muito sentadas nas cadeiras estofadas. Sentados com casacos pendurados e cachecóis nos pescoços e luvas nas mãos. Sentados com muito frio. Sentados e de braços muito levantados, como se fossem manifestar-se calados, de olhos fechados e punhos cerrados. José escrevia assim. Já João, não. João escrevia asas e sabores. Noites pequenas e grandes. Estrelas cadentes, almofadas brilhantes, bocados de mares, barcos, algas, saudades. João era escritor. José “escrevivia”. Ainda não descobrira porque é que gostava tanto de brincar com as palavras e de, por isso, virá-las e revirá-las em cima das folhas brancas ou com linhas. Não escrevia em quadriculado, nem em guardanapos de papel, mas aqueles blocos pretos, que João lhe oferecia, sempre que ia visitá-lo, eram uma maravilha. José gostava de ver passar gente nas linhas do que escrevia, de ver os cabelos loiros das senhoras, que entre uma vírgula e um ponto se erguiam. Gostava de pensar que os homens e as mulheres calados e sentados nas linhas do que ia ditando ao papel podiam um dia cruzar-se com ele num corredor da mercearia, na missa ao domingo ou na rua principal da freguesia, onde pessoas caladas e sentadas esperavam, todos os dias, pela chegada do autocarro. José preferia descobrir pessoas fora de casa. João vivia quase dentro dos livros, mergulhava dentro das páginas procurando descobrir nos parágrafos e nas linhas que os compunham mais palavras mágicas para inventar. José gostava de se perder nos hipermercados. João de adormecer na cadeira da livraria e sonhar com escritores e com diálogos. José gostava de escrever contos. João gostava muito de poesia. Nenhum tinha livros publicados. João, porque não tinha paciência. José, porque não tinha coragem. João sabia de cor as datas de nascimento dos seus poetas preferidos. José não sabia nada de cor, a não ser o som do apito do carro da fruta, que passava todos os dias à sua porta, para lhe deixar bananas e peras. José gostava de metáforas. João de analepses. José tinha palavras preferidas. João tinha palavras odiadas. José gostava de subida, descalça, Neptuno e oftalmologista. João odiava arrecadação, escadote, tronco e passadeira. João não conduzia. José andava de bicicleta. João usava gravata em algumas ocasiões, José nunca usava gravata ou sapatos abotinados. João dançava, José pulava. João ria muito. José sorria.Pode ser que João goste desta crónica de hoje; já José, não vai achar piada nenhuma, mas conto com o Joaquim para convencê-los; com Maria Armanda para distraí-los e com a Maria Filomena para me contar tudo. Maria Armanda gosta de peixe frito. Maria Filomena de sumo de laranja.
Já Joaquim, só entra nesta história, a meu favor.

2 comentários:

Gui P. disse...

Quadrilha

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou pra tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

Carlos Drummond de Andrade

Anónimo disse...

que belo texto!!! esta é a diferença entre as pessoas. Precisamente. Serenamente...