Estou na paragem da camioneta. Não espero que passe. Estou para aqui. Apetece-me estar para aqui. Estou com as caras das pessoas que passam dentro dos seus carros e dizem com os olhos: coitada...ainda não reparou que tem a braguilha aberta ou que simplesmente se riem com a cara pregada ao vidro. Mas não me importo. Estou como quero estar. Sozinha. Pisco os olhos e pouco mais. Respiro. Vem aí uma senhora. Tem o cabelo empastado e um pouco amarelo. A saia vem quase debaixo dos braços, por cima da barriga que cresceu com a idade e por baixo do peito que caiu com os sete ou oito filhos que amamentou. Não está vestida de preto. Talvez ainda não seja viúva. Acho que vem sentar-se ao meu lado. Não quero. Ainda lhe faltam uns bons cem ou cento e cinquenta passos e mais umas quantas pedras de calçada para aqui chegar. Hesito. Levanto-me ou deixo-me ficar aqui sentada? Vou ficar. Traz três sacos de plástico nas mãos. Tem um casaco de malha castanho escuro. As meias caem-lhe nas pernas pintadas com varizes. Espero que não cheire mal. Parece-me que já não se deve lavar há dias. Boa tarde. O banco subiu um pouco com o seu sentar de rompante. Tenho agora as pontas dos pés no chão e os calcanhares no ar. É forte. Deve comer bem. Estou um pouco tensa. Acho que ela já viu que tenho a braguilha aberta. A menina desculpe. Não quero parecer intrometida. Mas... e mostra-me os um, dois, três, quatro, cinco dentes que tem enquanto olha para as minhas calças. Consegui contá-los todos. São poucos e ela abriu a boca de riso tanto tempo que até posso adivinhar o que almoçou hoje. Pronto. Já a fechei. Obrigada. Nada menina. Está frio hoje. Parece que o inverno chegou mais cedo este ano. Pois é. A menina não tem frio? Não, estou bem. Ah, a menina é nova ainda. Quando chegar à minha idade vai ver. Pois. É verdade querida. Pois. A gente quando fica velhos é assim. Pois. Ah menina, que horas são? Não tenho relógio, desculpe. Ah querida, será que a camioneta já passou? E agora? Que respondo? Não faço a mínima ideia. Não vim para aqui esperar pela camioneta. Vim porque quis vir. Não sei. A senhora riu-se mas sem rugas. Não fez grande espanto pela minha resposta. Ainda bem. Estamos as duas caladas. Eu e ela e a rua em que estamos. Já não passa ninguém há bastante tempo. A menina tem fome? E inclina o seu corpanzil para os sacos que trouxe consigo. Tenho. De lá sai uma sandes de qualquer coisa embrulhada num guardanapo. Come querida. Obrigada. É de frango. A dela é de atum. Comemos. Vejo que tem alguma dificuldade em morder o pão. Coitada. É bom estar aqui com a menina. Continuo a mastigar. Venho aqui todos os dias esperar pela camioneta e janto sempre sozinha. E a menina? Eu também janto sempre sozinha. Ela não me falou de si. Mas eu também não lhe quero falar de mim. Vou agradecer-lhe. Devo-lhe um obrigada. Pela companhia e pelo jantar. E pelo alerta para a minha braguilha aberta. Eu é que agradeço. Calcanhares para o chão. Ela vai-se embora. Boa noite e até qualquer dia menina. Boa noite. Vira-me costas e segue. Para onde? E a camioneta? Não ficou nada. Só o banco quente do tempo que esteve aqui sentada ao meu lado. Esteve, não esteve? Eu também não estou à espera da camioneta. Estou à espera que toque o despertador. Vem aí mais uma parcela da vida, quase pronta para se subtrair ao total e somar às últimas contas feitas. Acordo com azia. Foi da sandes de frango, só pode. Bom dia.
* Júlia Matos
2 comentários:
Bom dia ! Lindíssimo ... como tu !!! Ou como vocês !!!!!!!!!!
Adorei!
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