domingo, fevereiro 24, 2008

Adelaide

António tinha reconcóbios no juízo. Não era uma pessoa estranha nem tresloucada, mas tinha e, reconhecia-o com frequência, no café com os amigos, uma forma de estar reconcóbica: com altos e baixos na alma. Como se ela tivesse fios e fosse de puxar para cima e para baixo ou de esticar como as pastilhas elásticas gorila.
Certos dias, gostava de poder ser azul, outros de ser tão verde como as alfaces, que o pai plantava na varanda, em pequenos vasos, para fingir que tinha uma horta, outras vezes, até transparente: tão transparente como as asas das moscas, que se colavam nos vidros das janelas, nos dias de calor, da sua casa de férias, quando ainda era possível, fazer concursos de pegadas com os primos, na terra, junto à macieira preferida da avó Adelaide. A casa de férias era grande e, ao contrário da que é cantada, tinha tectos e janelas e uns olhos muito grandes de avô sábio, que eram a prova de um diagnóstico perfeito: António era feliz e a sua felicidade media-se pelo tamanho das pegadas na terra da sua infância. Agora, passados tantos anos, desse tempo, que só a recordação devolve, António, vinte anos mais velho e mais cansado, entretém-se num solilóquio solitário, a contar aos amigos, que sente necessidade de passear por dentro de si próprio; que esses passeios, que dá, à mesa do café ou, enquanto tira fotocópias de livros, no local onde trabalha, o transformam numa espécie de sombreado humano; num valente e façanhoso relevo de si mesmo. Uma impressão. Os amigos, que não viveram as mesmas experiências do António, nem tão pouco conseguem compreender quão importantes, poderão ter sido os concursos de pegadas na terra junto à macieira da avó do António, temem que todas aquelas histórias não passem de invenções ou pequenas malinezas, que ele faça para pedinchar atenção. Mas, ao António tudo isso passa ao lado.
Enquanto, os amigos discutem sobre a veracidade das histórias que o António conta, ele embarca, mais uma vez, noutra viagem por dentro de si próprio, e, tal e qual, como nos livros que fotocopia e encaderna, vai paginando o tempo com a melhor impressão, que conhece: o azul dos olhos do avô, o verde das alfaces dos vasos do pai e a sua pegada, que por ser a maior, ganhava todos os concursos com os primos, junto à macieira preferida da avó Adelaide, que nunca chegou a conhecer.

1 comentário:

Maria das Mercês disse...

Tenho saudades do workshop...