terça-feira, janeiro 15, 2008

Hoje fazemos anos


Na minha terra não havia avenidas. Nem aeroportos. Nem edifícios com oito andares. Havia ruas que conhecíamos pelo número de arranhões que ganhávamos nos carros de esferas (negociadas na escola em troco de outro material precioso). Havia um aeródromo que cristalizava sonhos e viagens imaginadas do como seria estar com os pés por cima dos tectos das nossas casas. Essas... a casa dos nossos pais, a casa dos avós de cima (o que supunha a correspondente dos avós de baixo), as casas dos amigos, a escola, a igreja, a venda da Tia Isabelinha (onde as gamas e as bolachas recheadas eram tão baratas..) mais os recantos das brincadeiras.
Na minha terra a noite não fazia barulho, e o mantrasto incensava-a até à madrugada. E o sono era tão doce, como o acordar prometia.
Na minha terra o tempo durava tanto. . Dava para a escola, para os trabalhos de casa, para as obrigações que a mãe estipulava, para desenhar mapas do tesouro e caçá-los até quase à noitinha, para as brigas, para as lágrimas, para as prendas, para as memórias e os contos.
Na minha terra o espaço era infinito em cima dos montes, e as ilhas em volta eram só casas de vizinhos, mais o farol da Ribeirinha (que um dia se apagou, e todos ficaram tristes..).
Hoje, os nossos pés cresceram. Pisam as mesmas ruas e lembramos, exactamente, o metro em que tropeçámos, a hora, depois da escola, em que brigámos por coisas sem importância, o dia de tempestade que incendiou os fios de electricidade.
Hoje, os nossos olhos vêem-nos, uns aos outros, maiores, transformados pelo tempo que, afinal, não dura assim tanto; os pinheiros que plantámos num dia de escola, quando tínhamos nove anos, e que agora atingem o tecto do 1º andar.
Hoje, as nossas mãos apertam-se de outra maneira. A cumplicidade dos segredos prometidos em pactos de sangue existe só para ser lembrada, porque cada um se fechou dentro da sua própria casa, depois de assumir o seu papel de adulto conforme.
Hoje, apesar do tempo, as noites continuam as mais doces, e o mantrasto perfuma os dedos dos pés dos deuses que nos vigiam, a nós, e aos vizinhos que, nas outras ilhas, acenderam luzes mais fortes.
Hoje, só nós não somos os mesmos. Porque fazemos anos.
Anos??
Sim, anos.. Hoje faz quinze anos que não havia escolas secundárias na maior parte das nossas ilhas.. que tivémos de voar, provavelmente pela primeira vez, sobre o tecto das nossas casas, sobre o tecto de casas muito maiores, rodeadas de avenidas, luzes fortes, sem noites doces e sem mantrasto. Hoje faz anos que os nossos pais e mães nos viram chegar e partir, vezes sem conta, com as mãos coladas aos vidros dos aeródromos e aeroportos açorianos, com medo de mandar os filhos para o mundo (e a sua respiração gravava neles o adeus, não vás embora.. ou o vai, porque será melhor para ti, e terás o que eu nunca tive...). Hoje também fazem anos os que não tiveram coragem de partir, ou não tiveram o dinheiro escasso para andar com os pés no céu. E os que partiram de outra forma, sem que pudéssemos dizer gosto de ti, zela por mim, onde quer que estejas.
Hoje fazem anos os que arrumaram a adolescência numa caixa de cartão, porque o tempo lhe deu outras tarefas mais importantes.
Hoje fazem anos todos os valentes que, com catorze ou quinze anos, saíram de casa para serem um pouco mais, em 1992.
Esses açorianitos, hoje homens e mulheres, fazem anos.
E ninguém fala disso.
Ninguém se lembra.

1 comentário:

Anónimo disse...

Quem disse? Há muito quem se lembre.
J. Morais