De cada vez que me vou embora daqui detenho-me na entrada da porta, rente ao muro, de onde “voei” pela primeira vez, e esfolei os joelhos. Observo a chegada das gaivotas à ponta do cais e penso que falta um ano de tantas coisas para voltar outra vez. Se tenho tempo, na hora da partida, rodo o carro à porta do barracão, onde está impresso na parede o nome dele e o meu sobrenome, que é daqui, do meio destas pedras e do cheiro a madeira, espreito a ribeira, que não vejo correr há muito tempo, avanço até ao porto, onde ele me ensinou a mergulhar, subo e desço à muralha e parto, subindo o morro, sempre com vontade de virar para baixo, ficar mais uns dias e voltar a encontrá-lo. Tem sido sempre assim. Todos os anos. Desde há muito tempo. Houve um tempo bom e doce, que já vai lá muito longe, e que eu guardo como uma caixa de segredos para momentos em que me sinto a despenhar por dentro. Nessa caixa guardo fios de luzes, velas de aniversário, bolos e arroz doce servido às fatias, bóias, bolas de futebol ou, por exemplo os postais de natal com barcos desenhados na capa.
Agora, há este tempo renovado, que ocupamos todos juntos para parecermos muitos; um tempo em que nos temos vindo a abrigar uns aos outros como se assim conseguíssemos ser os mesmos que, um dia, pudemos ser, enquanto houve um, que nos vigiava o sono, sem dizer que o fazia; que nos servia de banco para jogar ao 31 ou que, sempre nesta mesma hora de despedida, nos acenava à partida, como se ela fosse breve e prometia ir visitar-nos, quando a escola começasse ou, se o trabalho não fosse muito, quando o Natal chegasse. Não me lembro de ter cumprido a promessa, mas lembro-me que era bom ouvi-lo dizer isto quando nos íamos embora. Lembro-me, já mais velha, de saber que, mesmo não indo, aquelas eram as palavras mais bonitas que ele conseguia dizer, na hora em que todos tínhamos que nos despedir.
O tempo de amanhã é repetido.
Já o vivi e revivi vezes sem conta. Terei que abandonar esta casa e este banco onde me tenho sentado para escrever, em frente à janela, com vista para a Terra Alta, por mais um ano. De modo, que sairei a porta, espreitarei o muro baixo, que para mim já foi muito alto; as gaivotas estarão cumprindo as rotinas diárias e eu rodarei o carro à entrada do barracão, tomarei um último café com a tia e seguirei o mais calmamente possível para o porto da partida. De certeza, que vou sentir vontade de virar para baixo, de voltar a entrar em casa para me certificar de que o centro de mesa está igual ao que sempre foi; que as cortinas continuam corridas da mesma maneira; que as cadeiras brancas permanecem na mesma e que, em cima do sofá vermelho coberto por almofadas verdes e beges, está pousado o saco da costura com bichos de fazenda para o outro bebé, que chega ao mundo em Setembro e, aqui a este lugar, como todos nós, lá para Julho ou Agosto do ano que vem.
Espero que ela continue à nossa espera.
Santo Amaro do Pico, 27 de Agosto de 2007.
3 comentários:
Bonito.
Comovente.
Para quem partilha dessa mesma sensação de "ter" de partir sem apetecer, de reocrdar quem já não está, mas "está" e "estará" sempre, para quem os tempos de agora são bem diferentes de outros, para quem faz de cada chegada uma romagem de muita saudade, para quem sente na terra um certo vazio nunca mais preenchido...este texto "diz" muito.
Obrigado por ele.
E parabéns!
Às vezes chegamos ao portão e olhamos para trás na esperança de encontrar alguém à janela, mesmo sabendo que isso já não é possível.
Falta alguma coisa... teme-se perder outras. A infância está cada vez mais longe, parecendo que foi um sonho...
Jinhos
abençoada benção
TóZé
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