sábado, agosto 25, 2007

O Poema Engravatado

«Meu poema engravatado, de manhã, vem trabalhar, porque alguém que o respeita acreditou nele. Lavado e barbeado, desce motorizado num velho e germânico motor, a íngreme avª alcatroada do Camarada Vladimir Ilionov Lénine. Sentado e quase feliz, guia-se a si e à companheira, de encontro aos climatizados escritórios do nosso falecido burguês de esquerda, respeitável Dr. Karl Marx, a espreguiçar-se da chatice que é a cartola do tio Sam a irritar o chá palestiniano do casmurro Yá Sir Arafat. Bom dia ó Buch! parece que ouve o meu snob poema de gravata, já solteiro e com a esposa entregue a uma empresa de auditoria, da velha boca da pimenta paquistanesa que, na baixa de Maputo, troca dólares em Gujarat e açambarca arroz em urdú. Mas charmoso, meu dromedário poema não se comove nos seus um metro e noventa e três de altura, com fato vestido a prestações, a não ser com o que finge saber o matutino mentícias que, na primeira página, não tem a história triste do magro ardina que o vende. E parado o motor do seu ariano preto germânico, o poema desce a sonhar engravatado o trabalho de suar já, os 35 graus ao sol que são as centesimais cabeças dos antipoemas lá dentro e à sombra, de nariz arrebitado e a ver se o poeta fez amor com despacho o deferindo, ou se bebeu desalmadamente o bulício dos orgasmos de que eles andam há muito demitidos. Meu poema engravatado é um herói que amo por tudo isso e até por ter quem, de entre eles e de entre as contas, as sacanices e as coscuvilhices, o anima a sonhar a eternidade de ser poema entre os camaradas militantes da bajulação que desfardam o proletário para descoser o luxo nipónico do seu sentido capitalismo. Eles não sabem que por debaixo dos aparelhos de ar condicionado, meu poema engravatado cura, com a ventoinha, o suor de os saber, hoje, doutorados em economia na nossa única universidade marxista de ontem e, por isso, não se admira que sejam tão resistentes à mudança, tão desvirtuados da realidade, tão militarmente obsessivos em ter o poder nas suas mãos. Enfermeiras de Aushwitz, pálidas seringas da pressa aos gritos pelos corredores a lamber as paredes do edifício, parem. A vida é, também, chegar a casa e tirar a cueca aos maridos, vê-los esbeltos na virilidade masculina que vos faz perder os sentidos. Não amem demasiados os raios dos papéis que tal como vocês amarelecem, nem se confinem às vírgulas dos despachos, nem à cor dos carimbos, nem em que rascunhos os outros gastam os lápis. Ide, irmãs devotas da burocracia, ide tirar a barriga da miséria depois das horas normais de expediente, e tragam risos pela manhã ao invés das vossas enjoadas ambições, tragam fragrâncias mais intensas ao invés da nafta das vossas compridas roupas, tragam a bela tez da reprodutividade ao invés dos arrepios que são as chatices da menopausa e se acontecer passarem por isso, lembrem-se que é também bela a biologia. E vós carrascos endoidados nos catálogos das modernas viaturas, a sonharem com aparelhos de televisão e a lamberem pelas virilhas da imaginação as tanguinhas da bela empregada chateada da vida por lhe não aumentarem o salário e ainda ter que entender a musculação frenética das vossas braguilhas. Cuidem-se pilinhas saltadoras, emprestem o melhor de vós a causas mais profundas que o País bem precisa. E o meu poema engravatado, vê, também, muito bem, os doutores pequeninos de agora a fazerem mais teses sobre a vida dos outros do que sobre o que aprenderam, os que nunca saberão onde fica Pequim, nem Nauru, nem Kiribati, nem Tuvalu e nunca leram a sério sobre os benefícios da masturbação, sobre a terapia do mijo, e que são tantas vezes capazes de tudo por mais uns tostões e incapazes de nada por carácter e por dignidade. E aos que não sabem, quero que saibam que o meu poema de gravata se sente bem na sua cor muito embora vos incomode isso, camaleões engasgados nos arcos íris que têm e que nem dignos são da única cor que vestem, a do sangue. E também os doutores de longe, peritos nas bichas dos empregos lá e espertos nas mordomias de cá, cama e roupa lavada, não à máquina mas com os mais belos braços das nossas autênticas nativas, desses que sabem tudo sobre nós e nada sobre eles, desses a quem a poesia daqui não comove porque não existe. A todos eles, meu poema engravatado, conhece-os bem, e nas sacanices do passado são iguais nas suas sacanices do presente. Essa gente que não lê poemas, nem livros, nem nada e trabalha até tarde mais por incompetência do que por responsabilidade, esses infelizes malabaristas do riso e do cinismo que dizem dos seus anónimos doutoramentos as mais vis e sujas mentiras sobre a magia e a beleza de escrever amor e senti-lo, de dizer azul e pintá-lo, de sonhar a água e bebê-la, de olhar uma mulher e beijá-la, de sonhar um filho e pari-lo, esses engalanados e copiosos pavões da arrogância e da prepotência não sabem é que o meu poema engravatado se senta ao lado deles por que é autêntico na humildade, é forte na lealdade e é imenso na sua grandeza. E só por isso os vê, e só por isso se cala, ante o veneno das suas línguas. Meu poema engravatado, coerente e forte, militante sonhador, socialista convicto, poeta do amor e das águas, tem direito, quando morrer para à vida, à bandeira do seu país sobre a urna, aos mais verdadeiros choros de quem o amou e respeitou, a viver perpetuamente nos livros que escreveu e a fazer vivo para sempre o que ele com fé toda a vida nunca usou: a poesia da sua gravata.»


Eduardo White

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