quarta-feira, agosto 29, 2007

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"Fechas a mala do carro cheia de bagagem. E, de súbito apercebes-te de que não é novo o gesto. Muitas vezes o viste já repetir. A muitas horas do dia, mas nunca como num fim de tarde. Qualquer que fosse a paisagem, a mesma paisagem: a terra calcinada, o canto das cigarras, o ar espesso do vapor a provocar a rarefacção das coisas vistas e a dar-lhes um ar de miragem. Fecha-se o tampo do caixão sobre a cara conhecida para todo o sempre. Nem se levanta o problema da eternidade. Esta terra é que tu amaste com todas as contrariedades e os problemas quotidianos. Amaste homens que por vezes talvez te tenham dado na cara e eram deliciosamente imperfeitos como tu. E tiveste de te despedir deles. Já não eram daqui. Já tinham problemas de mortos. Já se falava deles no imperfeito e não no presente. Mudou um simples tempo de verbo e tudo mudou. Um último olhar a essa caixa de mau gosto. Gostarias de atirar um torrão, como em criança, para esconjurar os maus sonhos. Mas falta-te a inocência. Decisivamente, tens de fechar com força a mala do carro. E pedes que te ponham os pneus à pressão 22. A pressão dos mortos."

Belo, Ruy, "A Pressão dos Mortos", in Homem de Palavra[s] ,lisboa, editorial presença, 1997, pp.134.

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