Escolho o livro da Marta para tema da minha primeira crónica no jornal Correio do Norte. O livro foi oferta de uma amiga. É azul. Tem letras brancas na capa. Parece o céu limpo do norte de São Miguel, quando é Verão e é de tarde e as árvores parecem querer soltar-se do chão para se opor à lei que manda que estejam quietas, cumprindo o ofício de ser sombra e mais nada. O livro é de poesia e não tem fim: é como a Marta, penso. Nesta noite, trouxe-o para cima para o lugar onde, normalmente escrevo, depois de ter viajado comigo na mala, entre as ilhas do grupo central. De vez em quando, tirei-o, abri-o, li-o, tornei a fechá-lo e pensei na Marta. (Eu, que nunca falei com a Marta. Hoje, tenho-a aqui a falar comigo). Por isso, escrevo devagar para não me distrair do que me conta e, sobretudo, não lhe traçar um perfil fixo. Demasiado analítico. (Também acredito que “o poeta é como uma planeta sobre a luz”). Enquanto, o folheio e leio, lembro-me de um verso de Gonçalo M. Tavares: “Há tantas coisas que falam ao mesmo tempo”. É assim que sinto o livro da Marta. Voando entre as ilhas, conheci a avó da Marta e lembrei-me das minhas duas avós. Nos seus vestidos pretos e os seus olhares destemidos, como borboletas em passo de gigante, enchendo-me a vida de ar, combatendo os malditos (Maria e Ana. Eu: elemento). O livro da Marta tem isso e “o som ilumina o silêncio” porque em mim (também) “havia uma casa feita de respirações (…)” O livro da Marta também é isto e de dentro parece que saltam papéis de cores muito variadas e por dentro dele volto a correr com os meus onze anos, em direcção a um barco de gente carregada de afectos e armada até aos ossos com mãos (de avó). O livro da Marta tem muitas coisas verdadeiras. Talvez, por isso, Daniel de Sá, na introdução do livro tenha escrito que os poemas da Marta são “para rezar”. Eu não desminto. Encontrei-me comigo mesma em quase todos. Encontrei-me com a minha gente neles todos; às vezes, nas entrelinhas, cheguei a ter a sensação de ver sentado, um avô ao leme, outro velejando nas palavras que escrevia e que me deixou para não morrer nunca mais em mim. As palavras também servem para isso: para não morrer. O livro da Marta não tem fim. É como a Marta. Tenho a certeza, agora. E, por tê-la, quero dedicar a minha primeira crónica no Correio do Norte à Marta. “ Não sou eu que sou diferente/ vocês é que são muito/uns iguais aos outros.” (Assim foi). Assim é e assim seja. Amen.
(*) Todos os versos citados nesta crónica foram retirados do livro Num Campo de Nada de Marta Furtado.
Fajã de Baixo, 11 de Março de 2007
Publicada no Correio do Norte, a 20/03/2007
3 comentários:
Tomei a liberdade de colocar todo este post no meu blog.
A razão deste procedimento está lá bem patente.
@braço.
Não conhecia a Marta, ou melhor, conheci, mais novo mas não me lembro da sua personalidade nem nada do género. Só de ouvir falar. Era da minha família, escrevia bem e acredito que seria excelente pessoa. Gostava, quando viva, de conhecê-la, mas agora não tenho hipótese. Enfim, o mundo é assim mesmo...
Abraço :)
Bem... eu faço parte também, daqueles que já tiveram a oportunidade de ler os poemas da Marta. Confesso que não sou uma pessoa que gosta de ler, mas fiquei arrepiado ao ler alguns dos poemas da Marta no livro, a maneira como usava as palavras...
Enfim... tal como já disse o Amarino acima, tenho também muita pena de não a ter conhecido.
E é horrível conhecer pessoas pelo que escreveram... principalmente daquelas que já partiram. :(
Abraço e adorei a homenagem
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