"Um homem passa com um pão ao ombro
- Vou escrever depois sobre o meu duplo?
Outro senta-se, coça-se, tira um piolho do sovaco, mata-o
- Com que desplante falar de psicanálise?
Outro entrou em meu peito com um pau na mão
- Falar, em seguida, de Sócrates ao médico?
Um coxo passa dando o braço a um menino
-Vou, depois, ler André Breton?
Outro treme de frio, tosse, cospe sangue
-Convirá jamais não aludir ao Eu profundo?
Outro busca no lodo ossos e cascas
-Como escrever, depois, sobre o Infinito?
Um pedreiro cai de um Telhado, morre, já não almoça
-Inovar, em seguida, a metáfora, o tropo?
Um comerciante rouba um grama no peso a um freguês
- Falar, depois, da quarta dimensão?
Um banqueiro falsifica o seu balanço
-Com que cara chorar no teatro?
Um pária dorme com um pé ás costas
-Falar, depois, a ninguém de Picasso?
Alguém vai num enterro a soluçar
-Como em seguida ingressar na Academia?
Alguém limpa uma espingarda na cozinha
-Com que desplante falar do mais além?
Alguém passa a contar pelos dedos
-Como falar do não eu sem dar um grito?"
César Valejo
(tradução de José Bento)
Poema incluído na obra: Rosa do Mundo, 2001 poemas para o futuro, assírio & alvim, Lisboa, 2003, 3ª edição, pp. 1362.
1 comentário:
podes gritar. eu calo.
beijos
eu
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