segunda-feira, maio 22, 2006

Croniqueta XXVI ou o Fífia é um freteiro



O Fífia é um autómato. Escreve por empurrão; não ri, não chora e não come se não der à mãozinha, o chefe que, num olhar cerimonioso e numa atitude, a parecer, benevolente, o empurra (sem lhe tocar!) para o palco dos actores de segunda categoria. Ele não nota, o que entristece os presentes e faz sorrir os companheiros. É uma tragédia. Atrás o coro dos desgraçados, enfiados em casacos de pele e pluma, arrastam os lábios, tocando-os, em cima e em baixo, apertando-os, para não desatarem a rir da sua figura esquelética; dos seus passos à Travolta; falando em rima prosaica para se parecer valente. Tem dias que ao vê-lo me lembro das figuras de borracha que, em pequena, eu e os meus irmãos coleccionávamos nas prateleiras vermelhas do quarto onde tínhamos os nossos brinquedos: ursos, cães, estrumpfes que viviam em casas de cogumelo e montes de bonecos sem nome, raça ou país, cujos braços se esticavam e reviravam, conforme a nossa vontade. Assim é o Fífia. Camaleão. Largartixa; costureiro de factos que conta ao chefe como mentiras; nos quais dá pontos, nós e não deixa aberturas. Crente de pacote; como a farinha maizena ou pó da roupa, cuja lavagem promete brancura e mais nada. O nosso Fífia, em andamento, com as mãos metidas nas algibeiras e as calças um nico de nada acima do limite da meia turca, parece uma vassoura de palha, cuja rama é apertada por um laço de amargura (porque a ternura é dos filmes!).
Nas festas, comendo algodão – doce à colher; algodão esse que compra no hiper a 20 cêntimos o saco e, em casa, enche de açúcar para poupar, o Fífia parecia um balão em forma de caracol, à espera de que um menino menos concentrado lhe largasse o fio e o fizesse voar, além dos limites das luzes e dos gritos alegres das crianças no carrossel. Triste, quis ir à Praça da Alegria, mostrar-se na Televisão, mas o chefe não o deixou e a sua voz chegou-lhe como um comando ao telefone; gritando-lhe que este não era tempo de alegria, mas de penitência, o que portanto o impedia, seriamente, de por os pés no programa e, até mesmo, de ir ouvir e ver olhos nos olhos o Clemente, que ao que parece vai estar no Coliseu Micaelense, amanhã ou depois. Anda aborrecido; preocupado, como é que depois há-de explicar à Ruth Marlene, que não a pôde ir ouvir, mostrar-lhe o boné vermelho e o piercing que, às escondidas, da mãe, da tia, da avó, da prima, da vizinha e do chefe, fez no dedo mindinho do pé esquerdo. Sempre adorou essas coisas brilhantes penduradas no corpo das pessoas e uma vez nas festas da Povoação chegou-se à Ruth Marlene, às escondidas do chefe, e prometeu-lhe por um berloque numa zona do seu corpo, mais íntima. Nada melhor que a ponta do dedo mindinho. Nada mais íntimo; dado que pode até andar todo nú, mas jamais tira os sapatos. É uma coisa que tem, desde pequenino, um hábito, que lhe pôs a mãe, desde os tempos em que ía para a praia do pópulo e a mãe lhe calçava as sandálias da bota Botilde.
O Fífia é parecido com essa figura do 123. Às vezes verde, outras roxo, o Fífia é um frete em pessoa; uma ambulante criatura; uma espécie de colar de pedras falsas; um guincho; um guardanapo; um vaso de flores pequenas; um pedaço de terra fora de validade, dura como um torrão… O Fífia não sabe de quase nada; não entende porque razão os homens vão de coletes vermelhos na procissão e as senhoras, algumas descalças, levam mantilhas a cobrir-lhes a cabeça. Mesmo assim, porque o chefe, o mandou; ontem pôs a sua melhor gravata, o fato de seda brilhante bege e foi acompanhar a procissão. Durante todo o caminho colheu folhas e flores da procissão e tirou à Imagem uma fotografia para mandar ao chefe pelo telemóvel; não fosse o seu amo pensar que ele não tinha ido…