Fotografia Amaro de Matos
Um risco na janela anunciado pelo movimento rápido do gato Pluma, que herdámos no Natal passado, quando viemos, de um vizinho emigrado para a Venezuela, faz-nos despertar do jogo de monopólio.
Afinal nada. Só o vento que chocalha as roupas na linha; camisas penduradas pelos pulsos, calças pelas barrigas e dois ou três pares de meias presas pelos dedos. Na horta, selvaticamente, crescem dois ou três pés de malagueta, mais umas couves e meloas para consumo interno, da casa, de nós todos, que a habitámos uma vez, ou duas, por ano. Permanecemos, como há anos, inquietos na nossa função de família, distraídos pela ocasião deste rebuliço de afectos, onde, sem disputas, dividimos hotéis na cidade de Lisboa, mas não abdicamos do nosso lugar à mesa.
Aqui [há tantas coisas que falam ao mesmo tempo] … quase impossível descrevê-las. Descodificar o sentido puro com que nos dizem coisas as coisas todas. Os barcos pendurados na parede, a fotografia do Benfica ou a estante coberta de vasos de flores. Lá fora uma mesa grande de plástico branca rodeada de cadeiras. Os nossos braços e as nossas pernas cheios de passeios pelo campo, abaixo e acima nas ruas, a maré cheia, o vazio do sofá vermelho, a porta de rede desmontada, velha, encostada à mesa, a porta da cozinha bege e as nossas alturas marcadas na ombreira da porta, dizem-me: tiveste 1 metro e pouco, correste nestas ruas, nadaste naquela maré, abriste e, poucas vezes, fechaste a porta, caíste ao mar, choraste. E dizem-me: a mesa branca é para encher de gente e os lugares de cada um para ocupar por cada um, na sua vez.
Os pássaros permanecem pendurados nas rochas. Ano após ano.
Ao longe passam barcos. Muitos. Cá dentro temos barcos. Alguns. Em terra e secos. Molhados de abandono. [há tantas coisas que falam ao mesmo tempo]
As janelas são de abrir para cima e a antena da televisão precisa de conserto. O tapete da sala não se anima. Está velho e gasto pelos nossos pés…
Durante muito tempo fomos muitos.
Não há versão do tempo que me chegue…
* verso do poema " Esconderijo" de Gonçalo M. Tavares
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