Prefácio
Podemos, como Marcolino de A Encomenda nas páginas desta Navegação Interior, insuflar uma figura
com a própria alma, mas num livro que não é só um livro, que é também um
revirar de vidas, uma enorme coleção de palavras e dos seus significados, para
além de nos permitir “passar para o lado de lá da barreira” devemos também descansar
nele, enchê-lo de nós próprios e lê-lo com a (legítima) sensação de que lhe
pertencemos, como um filho a uma mãe ou tinta à tela.
O leitor que virar as suas
páginas vai encontrar certamente numa rua, num desenho ou entre ações, um motivo,
um detalhe ou um acontecimento para sorrir e recordar aquilo de que somos
feitos, tudo o que trazemos connosco, o que ficou separado (não desperdiçado) e
esse gosto enorme de pertencermos aos sítios, a algumas pessoas (com liberdade
convicta) e mesmo a páginas de outras histórias.
Um livro – este livro - é a
aprendizagem do lado de lá das palavras, do seu avesso, do que a caneta
pincelou para quebrar o branco tímido das folhas de papel que aqui são tela e
vela para navegar no interior.
A magia dele está também no facto
de ter personagens diferentes de porto em porto, riscados a traço firme como
quem desenha contando com a braveza do mar.
O barco de Tomaz Borba Vieira vai salpicado, molhado, enterrado nas
ondas grandes do mar, umas vezes consome o leitor, outras liberta-o, para no
fim o deixar entre nós. Amarrado e não preso.
Ancorado.
Aqui e ali os modos (e os
feitios) de representação do real confundem-se nesta aventura marítima que é viver, indo de um lado ao outro da nossa
parte sentimental, de memórias afetivas, de imagens de passado, de desenhos, de
cenários universais, mesmo concretos ou mesmo abstratos.
A tendência de nos envolver nos
conteúdos faz-nos estar nos lugares, entrar nas salas de aula, fazer os
desenhos, atravessar a Rua Cavaleiro
Oliveira.
Se provas fossem (ainda) precisas
elas estavam aqui. Um livro como um quadro deve revirar a nossa vida, trazê-la
aos significados múltiplos que vamos tendo, à medida que crescemos e
envelhecemos, por dentro e por fora, na capa e na contracapa, no espaço e no
tempo, no meticuloso cuidado que vamos ganhando à medida que nos vamos
abandonando de umas e de outras certezas.
Este
livro acompanha-nos como o rasto de um barco no mar, entre a espuma, com peixes
ou sem eles, como os amigos que nos faltam ou que se chegam, poisando tão
levemente nas nossas eternidades, quais Serafinas
ou Serafins.
Uma
aventura. Este livro.
Mariana Matos
Dezembro de 2012