Numa inusitada decisão entendeu o Senhor Representante da República para os Açores enviar para fiscalização preventiva do Tribunal Constitucional o Orçamento da Região para 2014. Fê-lo não porque o documento prejudicava os açorianos, mas sim por entender que os beneficiava em relação aos trabalhadores da administração pública do continente. Quem ler os fundamentos do pedido de inconstitucionalidade fica com a noção exata do entendimento que o Senhor Embaixador, Pedro Catarino, tem da Autonomia.
Aliás, Sua Excelência, num assomo de inspiração inédita – e para dar prova de vida – resolveu, na mesma semana, aquando da mensagem de Ano Novo, propor a criação de uma lotaria com o objetivo de ajudar a financiar o ensino pré-escolar nos Açores. A ideia, por si só algo estapafúrdia, também contribui para entender melhor o enquadramento que S. Exa tem não só do cargo que, ainda, desempenha, como também o espírito com que vê o regime autonómico. Mas vamos por partes.
Sua Excelência, o Embaixador, considera inconstitucional que o Parlamento dos Açores aprove, em lei do Orçamento, uma alteração que visa alargar o âmbito da Remuneração Complementar. Nos argumentos aduzidos Sua Excelência considera, por exemplo, que a remuneração complementar não beneficia em nada os contribuintes do Continente que suportam integralmente o esforço de uma transferência de cerca de 251 milhões de euros a título de solidariedade para o nosso Orçamento. Na mesma linha de raciocínio argumenta ainda não ser decisivo, no plano constitucional, a circunstância da remuneração complementar não implicar em si mesmo um acréscimo de transferências financeiras do Orçamento de Estado para o da Região Autónoma dos Açores no ano de 2014.
Dito de outro modo, Sua Excelência, o Embaixador, considera que por dever de solidariedade para com os contribuintes do Continente, mesmo que a nossa gestão das contas públicas seja exemplar e que haja recursos disponíveis para ajudar as pessoas, a Autonomia dos Açores e os órgãos de governo próprio da Região não têm competência para decidir sobre a gestão do seu orçamento em nada que contrarie as políticas nacionais.
Note-se que o alargamento da Remuneração Complementar foi aprovado, por unanimidade, na Assembleia Legislativa dos Açores, uma circunstância que, no mínimo, exigiria de Sua Excelência, o Embaixador, alguma contenção ou sensibilidade política. Poderia, por exemplo, ter em conta que nunca, em quase 40 anos, foi enviado para o Palácio do Ratton um Orçamento de Estado ou um Orçamento regional para fiscalização preventiva - É sempre curioso verificar que, no Continente, um Orçamento de Estado que corta no rendimento e aumenta as desigualdades merece uma aprovação unanime do Presidente da República, e que nos Açores, a única zona do país que será duplamente prejudicada em 2014 em virtude de um exclusivo aumento de impostos aprovado por Lisboa, o Orçamento Regional, que visa, exatamente, atenuar esta desigualdade, merece o seu envio para fiscalização preventiva - Poderia ainda ter levantado dúvidas e devolvido ao parlamento dos Açores o documento para reapreciação. Mas não. Sua Excelência, o Embaixador, não se coibiu de exercer as suas competências, ainda que de modo pouco diplomático. E fê-lo de um modo pouco abonatório para as funções que desempenha, não se coibindo de fazer um juízo político relativo às competências próprias da Autonomia Regional. Na prática, a mensagem que pretendeu passar foi a seguinte: ao abrigo do princípio da solidariedade nacional, os açorianos devem sofrer, na mesma proporção e com a mesma intensidade, as políticas recessivas e de austeridade emanadas pela maioria que governa o País. Pouco importa o facto de a Região Autónoma dos Açores não contribuir em nada para o défice nacional. Pouco importa se o défice dos Açores é de apenas 0,4% enquanto o da República é de 5,5%. Não interessa se o endividamento dos Açores é de 20% em função do PIB e o do País ultrapassar os 128%. Para Sua Excelência, o Embaixador, a Autonomia deve ser exercida – apenas e tão somente – se for para cumprir as orientações emanadas do Terreiro do Paço. Afinal, conforme argumentou, são os contribuintes nacionais que suportam na totalidade a transferência de 251 milhões de euros dos cofres nacionais para os cofres regionais. Isto, num orçamento regional que, como se sabe, ascende a mais de mil milhões de euros e numa Região AUTÓNOMA com um PIB superior a 3 mil milhões de euros.
O problema de Sua Excelência, o Embaixador, é afinal igual a muitos outros que, infelizmente, não compreendem que o sucesso da Autonomia dos Açores contribui para a afirmação do País no Atlântico. Não entendem que a Autonomia não é um luxo, mas um processo político indissociável da identidade açoriana que promoveu o maior período de crescimento e de desenvolvimento da história dos Açores. Não compreendem que a austeridade, ao contrário da narrativa oficial de Belém, afinal não suspende a democracia. Para quem tanto apregoa a unidade do Estado, Sua Excelência, o Embaixador, prestou um mau serviço ao País. E, independentemente do desfecho deste contencioso autonómico – aberto pelo ainda Representante da República – fique Sua Excelência, o Embaixador, a saber que a Autonomia dos Açores é um património político das Açorianas e dos Açorianos que perdurará muito mais anos que a sua efémera, e nada saudosa, passagem pelo Solar da Madre de Deus.
Francisco Vale César
Da Minha Esquina, AO do dia 5 de Dezembro
1 comentário:
Boas
Como cidadão, como nativo, sou Açoriano, mas pergunto-me muitas vezes o que significa a Autonomia Açoriana de facto.
Ser autónomo, é uma faculdade que diz respeito as partes, mas nunca ao todo, pois porque sempre dependemos de alguma coisa, alias, de várias coisas. Então dou comigo a repensar o significado de independência, até que, para meu espanto, percebo que a diferença entre autonomia e independência, está em que uma tem vontade própria e outra não - ser autónomo não é ser independente, é estar dependente de alguma coisa em concreto.
Por mais injustos que possam ser as medidas do governo da República, desde que estas, nota-se, não sejam desproporcionais em relação ao resto do país, tanto para melhor como para pior, a nossa Autonomia não nos dá o privilégio escolher apenas as que gostamos. O facto é que no presente, ser-se funcionário publico nos Açores já se apresenta como sendo melhor do que ser-lo no continente. Ora, isto que pode levar a uma desestabilização que dificulte, ou mesmo impeça, o governo nacional de conseguir levar a cabo a reformas a que aceitou, ou que se propôs, realizar no país. O ministro, esse olheiro da República, agiu no âmbito da sua competência.
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