(Ela tocava piano. E dentro do piano havia um compasso e dentro do compasso uma espera e na espera uma ausência e na ausência um não sei quê de espanto e no espanto qualquer coisa que demorava e nessa demora uma caixa e dentro da caixa um pedal e no pedal um pé de ninguém…)
Um dia lera naqueles livros que estão expostos, por ordem das suas cores, nas tabacarias dos aeroportos, entre os galos de Barcelos, as carteiras da Hello Kitty e os jornais A Bola, que os “pianos são como pequenas caixas com gente dentro”.
Na altura rira a bandeiras despregadas com aquela espécie de metáfora de pacotilha elaborada por um tal de Alain qualquer coisa, que escrevera um livro de silogismos e metáforas, que custava pouco mais que cinco euros e que tinha citações de Voltaire na contracapa. Escrevia o tal Alain o que era um piano ou o que coisa podia ser esse objecto.
Impressionava-a a facilidade ou a ligeireza com que se punham livros assim à venda, com pessoas sorridentes nas badanas e biografias de muitas linhas e palavras despegadas umas das outras.
Impressionava-a isso e a confusão das tabacarias dos aeroportos, sempre cheias de muitas coisas para turistas, misturadas com pacotes de gamas americanas e pacotinhos de pulseiras e ganchos, copos com palitos a gritar o nome dos lugares, onde ficam os aeroportos, lenços cheios de golfinhos ou autocolantes para o frigorífico com palavras de ordem como: “Amo-te, isso basta-me”.
Os aeroportos são sítios cheios de gente a partir e de outra tanta a chegar. Faz confusão o mecânico da coisa: de se partir e de se chegar e se voltar a partir e se voltar a chegar.
Normalmente, os cidadãos que vão chegando e partindo, mais os outros que vão despedindo e deixando e largando e saindo não pensam nisso, mas ela pensava com frequência. Nisso e noutras coisas, como por exemplo na forma como as crianças que partem ou que chegam têm quase sempre um ar feliz e trazem ou levam, não raras vezes, uma mochila. Nos fumadores que fumam últimos cigarros à porta e nas mães a receber ou a deixar os filhos.
(Ela tocava piano. Tocava de tudo. Tocava piano rapidamente. Tocava piano porque achava graça.)
“Os pianos são caixas de música”, explicava o tal do Alain que ela comprou no aeroporto de Lisboa para ler qualquer coisa, que não fosse notícias do mundo a falar de coisas tristes e de mortes e de fomes e de crianças em desespero e de padres e de futebol ou de política e de coisas dessas. Comprou o livro com citações de Voltaire na contracapa e com uma fotografia de um autor que tinha um ar de vendedor de sumos Tang.
Os aeroportos são sítios bons para ler tipos como o Alain. Nunca se ouve ninguém a tocar piano num aeroporto. “Os pianos são como aviões a aterrar cheios de gente e malas”, explicava ele, o tal, penteado à moda de Alain Delon, mas com ar de vendedor de sumos de pacote com palhinha.
Nas tabacarias dos aeroportos revistas ensinam a bordar, outras mostram caras chiques e asfaltadas por quilómetros de cremes e pastas, mais vestidos e cores e sandálias.
Podia ter optado por comprar uma revista daquelas que ensinam a emagrecer em dez dias ou outra que falasse das mini férias de um Presidente da República, mas tudo isso comparado com um livro de silogismos e metáforas do Alain não sei das quantas que na biografia dizia que era orgulhosamente músico desde os três anos de idade, mas que não ousava tocar piano, não fazia sentido.
Afinal, o que pode ser melhor que ler coisas como “o piano é a planície das mãos”, quando comparado com as coisas que um Presidente da República diz (ou não diz) nas suas mini férias?
Nada.
(Ela tocava piano. E dentro do piano havia cordas. E nas cordas dois passarinhos. Um partia. O outro chegava…)
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