Cheguei hoje. Achei a cidade mais velha, os carros apertados de encontro às paredes sujas e as artes, perdidas no rastreio do olhar dos cidadãos para os corpos desnutridos dos pintores da Rua Augusta. Assustaram-me os (teus) olhos (do Tejo), chorando à partida das gaivotas, por cima da Ponte 25 de Abril, como se acabasse a Liberdade, ao chegarmos ao lado de lá, à outra banda. Abaixo do meu prédio, onde antes era uma loja de skates, abriu um chinês, mais um, vende papagaios de corda, garrafas de vidro azul para decorar com bolinhas, do tipo berlindes, com ervinhas dentro, e naperons brancos dobrados para sofá, disse-me a senhora chinesa, contente. A loja do canto que era de uma Florista de dentes amarelos e brincos de oiro fingido, onde se vendia “Florências dos Açores”– como dizia no cartaz – deu lugar a uma loja de pulseiras e colares de fantasia, e em frente, onde antes era o Frango, está uma casa de jogos.
Nas ruas, há pessoas sentadas ao lado de cães, com cartazes escritos a pedir ajuda ao “povo português” por não terem dinheiro e quererem comer. Nos autocarros, as pessoas vão caladas e os versos do concurso da Carris, que depois vieram nos pacotes de café, deram lugar às multas aplicáveis aos passageiros. (Saio de Lisboa com os olhos multados. Escrevo “olhos multados”)
A minha vizinha do 4º andar C morreu o mês passado e o marido, o Sr. Raimundo, esteve, estes cinco dias de manhã e à tarde, sentado à porta, à espera dela. (A minha Arlinda que queria tanto ir aos Açores. Foi ao mercado comprar abóboras.) Hoje ainda deve lá estar.
Voltei à cidade passados dois anos. Está quase tudo igual com excepção do nascimento do Rodrigo, que acabado de chegar me mandou uma mensagem, dizendo que esperava a minha visita nos Olivais. Encontrei-o pequenino como todos os bebés de um dia, tão pequenino que nem cabe no fatinho que lhe comprei, o mais pequeno da loja. Não lhe serviu, ainda.
No autocarro, de volta a casa, um homem chama ladrões e vigaristas à presença dos passageiros, dizendo que foi por causa deles que foi para a guerra, porque eles queriam dinheiro, os malandros que não trabalhavam, e que queriam matar os jovens portugueses. Gritos e Choro repentino, como um menino. Duas senhoras, muito bem postas, de olhos pintados do azul da moda, estendem-lhe uma moeda. Deitou-a fora quando, ao mesmo tempo, abandonamos o 46.
Já não há a igreja protestante na minha rua. Levaram o seu Jesus para outro lado, diz-me a porteira de olhos cor de rubi e estrelas prateadas num casaco de ganga achinesado. Sorrio.
Gostei de voltar a Lisboa de ver os (teus) olhos do Tejo pendurados no Cristo Rei, de visitar o Restaurante da Bárbara na Av. Miguel Bombarda, onde ficava a sede do BCA. Trouxe quilos de livros, duas ou três coisas esquecidas lá de casa e uma Cegonha de Benfica a bailar nos (teus) olhos do Tejo, que ficam aqui, para sempre.
Eu espero, pacientemente, pelas abóboras.
10 comentários:
...ai esse lobo antunes ;)
(que é que trazes no saco da fnac?)
ai Dr. Guilherme e não é que até tem razão...:)
Olha, trouxe muita teoria da literatura, Shelley, por exemplo, por causa do meu Trabalho, trouxe " As 5 faces da Modernidade" de Calinescu, o "Auto dos Danados" do "Lobinho" (LAntunes), porque era a obra que me faltava. Trouxe as Histórias da Terra e do Mar, da Sophia ( já leste? muito bom. fresquinho.)e mais uns quantos livros de Poesia, entre eles o livro do jovem poeta Vasco Gato, "Um Mover de Mão"! Basicamente, foi isto. :)
...ena ena uma mã cheia de cultura!Boa degustação, Sra Dra! :)
O Lobo Antunes está na ponta dos dedos, na capa das teclas, no texto, por todo o lado, e ainda na mala!!! Shelley é do mais fino que há.
O Lobo Antunes é um mestre, - no verdadeiro sentido da palavra, caro amigo André. ;)
caríssima Mariana
de Percy Bysshe Shelley tenho aqui na mão o fenomenal Defesa da Poesia, da Guimarães Editores, na primeira página informo-me que o comprei em 22 de Julho de 1996, pela quantia de 892,50 escudos, e para a vida ficou-me a frase final do livro que transcrevo: "Os poetas são os legisladores não reconhecidos do mundo."
Brutal.
Boas leituras.
Eu tenho uma versão em fotocópia que tirei quando andava no 1º ano da faculdade, em 1996, salvo erro.
" “Um poema é a própria imagem da vida,expressa na sua verdade eterna"
ai a fotocópia, a fotocópia... eh eh
Digamos que sempre convivi com fotocópias. Mas, agora, cá está em versão livro. :)
O fato era amarelo? É que a minha irmã queria que a minha mãe tivesse escolhido o Rodrigo que tinha um fato amarelo na clínica, e não o Rodrigo carequinha como eu quando nasci.
Mas Lisboa é sempre Lisboa. É uma cidade com muitos e bonitos olhos, para nos ver, e para nós vermos.
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