"E um dia os homens descobrirão que esses discos voadores estavam apenas estudando as vidas dos insectos..." Mário Quintana
quarta-feira, maio 04, 2005
As minhas filhas
bonecas
Eu queria escrever qualquer coisa de bonecas. Uma estória, uma frase, qualquer coisa, que, por alguns momentos, fosse uma homenagem às minhas filhas de quando eu tinha 5, 6,7,8,9,10 anos. Eu que fui a orgulhosa mãe daquelas que, hoje, estão sentadas na prateleira do “Quarto de Brinquedos” e que só saem quando chega cá a minha prima mais nova. Mas não consigo. Podia lembrar o dia em que bati na Madalena, porque ela não comia a sopa primorosa de cenoura, cascalho e girassol; ou então falar de quando as minhas primas me deixaram as suas filhas e eu as enchi de areia e as pequenas ficaram incapazes de abrir e fechar os olhos. Mas não era bem isto que queria dizer. Podia falar do João, um boneco que tive, aos 7 anos, e que se perdeu no cais, caiu ao mar, e eu chorei qual desgraçada mãe, vendo-o afundar-se sem remédio, mas depois fiquei logo boa, quando me ofereceram a Rita, a quem, passados dois meses cortei o cabelo a ver se crescia. Nunca cresceu, mas deram-me a Patrícia, que tinha uma fita no cabelo igual à que eu usava na altura, cor de laranja, um laço enorme…As minhas bonecas. Na minha casa havia e ainda há uma casa de bonecas, que o meu pai me fez e eu morava nela e tinha um marido pescador e fazedor de barcos, que sempre comigo, sem eu o ver, era o pai de crianças que iam e vinham, conforme a minha disposição. Tive como todas as meninas da minha idade um bebé careca e também cuidei dos bebés das minhas primas, depois do desastre da areia. Confiaram em mim, nada de mal aconteceu.
Num Natal, chegou-me a Matilde, vinha do Pico, com uma filha e uma mala. A minha irmã tinha igual e as minhas primas também, depois, como sempre, apareceram no mercado os cães da Matilde, a casa da Matilde, os sapatos de baile da Matilde, enfim, tudo para a Matilde. Dei papa à Matilde, substitui-a pela Joana, que caiu do sofá vermelho em casa da minha avó e lesionou-se no pescoço. O meu avô levou-a ao Hospital das Bonecas. Ficou como nova.
As minhas bonecas que hoje estão sentadas na prateleira do quarto aqui ao lado são imensas, de cabelos compridos, amarrados ou não, laços, vestidos da mãe, quando tinha os seus anos mais novos e cabia num vestido de 56 cm, casacos da tia com um mês; calças do tio, quando tinha um ano. As minhas bonecas na prateleira do quarto aqui ao lado chegaram do Pico, do Faial, de S. Jorge, de Lisboa, da América.
Eu queria falar das minhas bonecas, dos seus sorrisos traquinas, do seu andar desajeitado com falta de pilhas e olhos pestanudos, bochechas pintadas com pó vermelho e uns ares sempre felizes. Queria falar delas, das suas manias, dos seus cabelos penteados, das suas roupas coloridas, das suas confidências ao meu ouvido; queria falar dos seus ares de donas do mundo, dos seus berços de vime, dos que o avô me fazia de madeira e das suas malas que chegavam da papelaria embrulhadas em papel castanho nos dias dos anos, mas não sei como.
Os laços, os traços, as mãos de borracha, os olhos nunca cansados, os rostos sempre a sorrir, prontas para passear nas cadeiras de pano e nas rodas de esfera, nada queixosas, sempre contentes. Tive bonecas de pano, bonecas de lã, bonecas de louça, bonecas de papel, bonecas de barro, bonecas.
Nunca nenhuma das minhas filhas chorou.
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3 comentários:
Só tive bonecas até chegar o mano. Depois, foi mais divertido (e necessário) tomar conta desse bebé! :)
Acredito. Claro que as "filhas" são pura ficção. Coisa de menina entre os 5 e os 10 anos. Aos 5 também nasceu a Júlia...a mana mais nova.:)
Fui apanhada. ;)
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