quarta-feira, maio 31, 2006

O Haver

"Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
– Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do quotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história...

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e do mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Sem saber que é a minha mais nova namorada.

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens."


Vinicius de Moraes
Ouve-se aqui

terça-feira, maio 30, 2006

Croniqueta XXVIII ou o Fífia é um leque, um papagaio de atirar ou uma cadeira de lona




Quando se lhe dá o sol, o Fífia é um leque aberto; armado parece um papagaio de atirar, uma cadeira de lona, cujo tecido forte e azul mar, é preso pelos pés e pelas orelhas, lembrando o Fífia de semblante “esticado” às 9 da manhã, voando, para o seu trabalho, onde entre as colegas e os colegas, faz furor, agora que, chegados à Primavera, calça as peúguinhas da mesma cor que a camisa; sobressaindo por detrás do sapato, moda viva. O Fífia é um homem na moda; uma figura de roda, cujas “artes de mestria no vestir” fazem dele um Homem “on top”, como diz, quase soletrando o inglês, que agora aprende, nas cassetes que lhe chegam da “Escola Britânica”, pagas a peso de oiro, pelas vizinhas, amigas de infância da mãe, que já contam com ele para fazer de “língua” nas Noites de Verão do Campo de São Francisco.
Não se pode dizer que ele não é esforçado, que não tem um sei quê de very fine, que lhe dá um toque de remake de Figura dos anos 50, quando, descendo do seu carro novo, de cinco portas para levar as vizinhas todas às festas, pousa o pé delicado na berma do passeio e deixa à vista de todos um brilhante e lustroso sapatinho cor de burro quanto foge, mas ele gosta e, como gosta, a gente não pode gozar. Porque gozando, ele chora e depois é uma chatice de muitos lenços e baldes de lágrimas e vizinhas e mães e tias aflitas…Não vale a pena. Por mim, o dito Mr. Fífia pode calçar os sapatitos que entender desde o momento que não pare ao pé de mim com as suas tiradas de algibeira, gravadas em dois botões de punho doirados, que mais parecem cereja em cacho; usando de discurso engravatado e tom assoado…
Do Fífia, deste Fífia, fico-me por aqui; não vá o diabo tecê-las e um dia destes, andando eu nas compras diárias do Hipermercado descansada, escolhendo peras e maçãs, engulo sem querer um papo-seco. Mais vale prevenir do que remediar. Porém, eu que não sou moça de enredos, aviso: reparem bem no seu style, no seu look de dandy, de sapato-vela; qual marinheiro e ar de leque aberto, esticado como as cadeiras de lona, duro como o tecido delas, azul como o mar e sempre Fífia, papagaio de atirar...

Letra de olhar para Trás

T
É de Tudo
Todos
Tapar
Tipo
Tipificado
Pode ser de Tijolo
Tiro
(de espingarda)
Tiras o que não tiro, tiravas…
Tirei
Trago
(o fumo do cigarro)
Trago. Trazes?
Trouxe.
Troca
Trocas, troquei, trocava
(ai se eu trocasse, meu Deus….)
Troco
Troça
Torta
(de maçã)
Toca. Toca.
[Toc Toc
Tocam
(à porta)
Truz Truz
Trabalho. Trabalhas. Trabalhava
A Tralha
No Talho
Tarde
Tu
Tarouca
Tonta
(Entrei na roda. Tarde. Tarde.)
Tenda.
Tende.
Tino.
Tunísia
T letra de ficar para Trás.
Traz-me o T para arrumar!

domingo, maio 28, 2006

Hiac!



Ele há dias em que nem Hiac serve de conforto!

sábado, maio 27, 2006

Recomendação de Leitura


"(...) MGM O Mário tem um poema que é muito bonito, em que diz:
"Queria de ti um país de...
MC "De bondade e de bruma"
Olha eu não sei se realmente era isso que eu queria, sabes?
Posso tê-lo querido. Posso ter desejado isso diante de certas adversidades.
O poema também é verdade, é evidente que não te vou dizer mais do que está lá escrito. É aquilo! Não é?
MGM Mas o que é que queria deste país?
MC "O mar de uma rosa de espuma", não é? Para que queres que eu ponha outras palavras que não vão dizer mais do que isto? Acho eu. Vão estragar. (ri)
MGM Eu perguntei o que era para si a saudade? E o Mário deu a resposta de Pascoaes, mas eu queria saber... (...)
MC Como tu sentes! Então eu posso dizer mais do que tu? Tu não tens saudades?
MGM Mas eu sinto como dor...
MC Não, pode não ser dor. Pode-se ter saudade de um paraíso, sabes? Saudades do inferno é que ninguém tem. (ri)
E o Pascoaes disse isso, que a saudade é uma conjunção, um anel, um anseio de um passado já desaparecido e de um futuro também, a chegar. São as duas coisas juntas. Porque tornar presente uma coisa que já passou, já é de alguma maneira futurá-la. Ah, eu tenho ali muitos livros sobre a Saudade...
Agora, é uma coisa um bocado portuguesa, não é? Porque somos um país aqui do extremo da Europa, aqui à beira-mar...não temos muitas hipóteses, então sonhamos, sonhamos muito. Muito...Sonhadores!...Eu há uns dias que tenho saudades, sei lá, de comer uma grande lagosta, tenho saudades de quê? Olha, tenho saudades de voar! (...)"


excerto de Verso de Autografia, livro que surgiu como complemento ao documentário Autografia (filme de Miguel Gonçalves Mendes sobre Mário Cesariny), editado pela Assírio e Alvim, em 2004.

Bom Fim De Semana!

quinta-feira, maio 25, 2006

Arrejeitadas

"A abertura à vida do património cultural que é a Igreja do Colégio e a recente inauguração do Núcleo de Arte Sacra do Museu Carlos Machado causaram um misto de inquietação de alma e dor de cotovelo naqueles que vêem na “cultura viva” a possibilidade de morte do seu próprio espaço. O desassossego não surge do facto comum de a Arte ser apátrida, mas do delírio de que o património, aquele património, deveria ter dono... Melhor dizendo, herdeiro. E neste caso quem haveria de ser? A Câmara de Ponta Delgada, esta Câmara, pois claro!(...)"

porque quando um homem arrejeita bem deve dizer-se, que foi uma arrejeitada bem dada, mesmo que muitos não concordem. É da vida!

Um Homem na Cidade


Agarro a madrugada
como se fosse uma criança,
uma roseira entrelaçada,
uma videira de esperança.
Tal qual o corpo da cidade
que manhã cedo ensaia a dança
de quem, por força da vontade,
de trabalhar nunca se cansa.
Vou pela rua desta lua
que no meu Tejo acendo cedo,
vou por Lisboa, maré nua
que desagua no Rossio.
Eu sou o homem da cidade
que manhã cedo acorda e canta,
e, por amar a liberdade,
com a cidade se levanta.
Vou pela estrada deslumbrada
da lua cheia de Lisboa
até que a lua apaixonada
cresce na vela da canoa.
Sou a gaivota que derrota
tudo o mau tempo no mar alto.
Eu sou o homem que transporta
a maré povo em sobressalto.
E quando agarro a madrugada,
colho a manhã como uma flor
à beira mágoa desfolhada,
um malmequer azul na cor,
o malmequer da liberdade
que bem me quer como ninguém,
o malmequer desta cidade
que me quer bem, que me quer bem.
Nas minhas mãos a madrugada
abriu a flor de Abril também,
a flor sem medo perfumada
com o aroma que o mar tem,
flor de Lisboa bem amada
que mal me quis, que me quer bem.


Ary dos Santos

quarta-feira, maio 24, 2006

Croniqueta XXVII ou o Fífia parece uma ode; é prosaico e irritante...




O Fífia é prosaico. Deitado parece uma quadra; em pé um verso; uma redondilha; uma estrofe. De costas: uma ode, uma oração, uma canção de engate, disfarçada, (e mal) por um cabelo monumental, qual estátua de Zeus ou Ulisses. Nunca Baco (ai é pecado!).
O nosso Fífia é de repente, sem tirar o gosto à prova, um arrebatado poeta, em cujas linhas mora a pouca idade para versos; dado que, para lhe subir o grau de maleitas, a boca lhe escorregue quase sempre para a verdade, quando de pena em punho e papel dobrado em quatro (para experimentar quatro vezes) lhe saem rimas como laranjas de cestas pouco apropriadas, porque sem asas…Não voam. Caem e morrem; saltitantes nas entrelinhas dos livros sobre os quais discorre; molhando o polegar; sempre que vira a página na sua boca cavernosa; onde vê sombras dos dentes que, ao longo dos tempos, foi perdendo, por cada audácia cometida. Da vida, dirão os clichéticos do costume; enquanto todos os outros Fífias, espalhados pelos salões da cidade, fumando cigarros e cigarrilhas, charutos e outras coisas, se entretêm buscando nas artes fífadas a desculpa para a sua inércia; para a sua apoquentação dos decassílabos; dos sonetos e da triangular inventiva da "Cóltura" como adiado tempo de ser qualquer coisa na vida. Um entretenimento. Buscam-lhe posses; disfarçados de críticos literários, de carrapitos nos altos dos cocorutos e chaves metafóricas, argumentadas em cadernos de argolas, cujas margens abrigam fracassos de literatos em busca do agasalho das letras. Será que ainda não deram por isso que o acento circunflexo não é um chapéu?, que entre a vírgula e uma sopa há uma enorme diferença ou então que um til em cima de uma cenoura não faz com que ela fique moída?! Desesperados. Fartos, mas não suficientemente corajosos para agarrar na corneta e tocar a sinfonia. Não. Os Fífias "cóltorais" são de outra louça. São feitos de rascunhos; de traços; de fases como a luz, só que, a olho nú, vê-se logo, não se acendem. Longe. Muito longe dos iluministas; do Sturm und Drang alemão, das tertúlias de café, dos verbetes; das lógicas rituais do Surrealismo ou, tão só, do Renascimento. Não renascem. São sempre iguais. Soam a esgotado; fora de uso e de moda. Antiquados.
O Fífia "cóltural" é um sujeito de poucas amarras; mas laços fartos, aonde procura o “plural académico”, como se, numa busca de google descobrisse, num instante, a tese da sua vida; para dizê-la aos amigos e dobrá-la, de lombada virada para fora, na estante de madeira que comprou para a sua casa; o Fífia "cóltural" diz, com frequência, “sic”, “apud”, “etecetera”, fala francês. Não toca piano. O Fífia "cóltural" confunde Popular com popularucho, mas mesmo assim, não se priva de tecer comentários sobre as letras maravilhosas de Clemente, esse poeta maior do século XXI, exclama, enquanto nas Barracas do Senhor Santo Cristo, compra cassetes do ídolo. Herdeiro de um antepassado glorioso de ventos e dores fortes atravessando marés, o Fífia é mão embaraçada; cara de constipado e teimoso de espinha a espinha.
Com ele, um coro de Fífias aparece logo para defender os heróis das letras melodiosas; de programas devidamente expansivos, onde vão todos, os maiores, ao lugar de cultura maior, ouvir o maior dos maiores. Em Adjectivo, o Fífia é dos maiores. Todos juntos, lembram sacos de plástico, que como os cestos, não têm asas, tendo por isso o destino de “voar baixinho”. Gosto, Estilo, Vontade e Sentimento Próprio, mesmo que enumerados em mais do que uma antologia poética ou, mesmo enunciado, pelos professores das universidades onde tiraram os cursos (com livros amarelos da Europa América) não entram no léxico dos Fífias "cólturais". Afinal de que vale isso se, sentado à secretária, parecendo uma Farsa, um Auto, uma Tragédia ou quiçá um Romance de Cordel, se pode ser o maior e o melhor Fífia cóltural? Um sujeito de ar clássico; uma espécie de carril de linha, em cujo azul prateado adormeceu, no dia em que nasceu, o gosto pelas coisas simples. O Fífia é um adjectivado e mais nada.


Post-Scriptum O Fífia vai de férias.
Não quero que se torne mais irritante; pocinhento; cruzes credo uma ode repetitiva, um poema mal acabado; enfim uma obrigação...Obrigado já é ele a ser Fífia toda a vida...

terça-feira, maio 23, 2006

Gaivotas


Imagem roubada daqui

Citação (importante)



"(...) a açorianidade é pertença da identidade açoriana - fenómeno maior que, como sabemos, está sempre evoluindo e transformando-se, uma vez que os fenómenos que a informam também se alteram. Não há identidade colectiva que seja estática. (...)"

Luís António Assis Brasil, Escritos Açorianos, A viagem de retorno, Edições Salamandra, Lisboa, 2003, pp.20

segunda-feira, maio 22, 2006

Croniqueta XXVI ou o Fífia é um freteiro



O Fífia é um autómato. Escreve por empurrão; não ri, não chora e não come se não der à mãozinha, o chefe que, num olhar cerimonioso e numa atitude, a parecer, benevolente, o empurra (sem lhe tocar!) para o palco dos actores de segunda categoria. Ele não nota, o que entristece os presentes e faz sorrir os companheiros. É uma tragédia. Atrás o coro dos desgraçados, enfiados em casacos de pele e pluma, arrastam os lábios, tocando-os, em cima e em baixo, apertando-os, para não desatarem a rir da sua figura esquelética; dos seus passos à Travolta; falando em rima prosaica para se parecer valente. Tem dias que ao vê-lo me lembro das figuras de borracha que, em pequena, eu e os meus irmãos coleccionávamos nas prateleiras vermelhas do quarto onde tínhamos os nossos brinquedos: ursos, cães, estrumpfes que viviam em casas de cogumelo e montes de bonecos sem nome, raça ou país, cujos braços se esticavam e reviravam, conforme a nossa vontade. Assim é o Fífia. Camaleão. Largartixa; costureiro de factos que conta ao chefe como mentiras; nos quais dá pontos, nós e não deixa aberturas. Crente de pacote; como a farinha maizena ou pó da roupa, cuja lavagem promete brancura e mais nada. O nosso Fífia, em andamento, com as mãos metidas nas algibeiras e as calças um nico de nada acima do limite da meia turca, parece uma vassoura de palha, cuja rama é apertada por um laço de amargura (porque a ternura é dos filmes!).
Nas festas, comendo algodão – doce à colher; algodão esse que compra no hiper a 20 cêntimos o saco e, em casa, enche de açúcar para poupar, o Fífia parecia um balão em forma de caracol, à espera de que um menino menos concentrado lhe largasse o fio e o fizesse voar, além dos limites das luzes e dos gritos alegres das crianças no carrossel. Triste, quis ir à Praça da Alegria, mostrar-se na Televisão, mas o chefe não o deixou e a sua voz chegou-lhe como um comando ao telefone; gritando-lhe que este não era tempo de alegria, mas de penitência, o que portanto o impedia, seriamente, de por os pés no programa e, até mesmo, de ir ouvir e ver olhos nos olhos o Clemente, que ao que parece vai estar no Coliseu Micaelense, amanhã ou depois. Anda aborrecido; preocupado, como é que depois há-de explicar à Ruth Marlene, que não a pôde ir ouvir, mostrar-lhe o boné vermelho e o piercing que, às escondidas, da mãe, da tia, da avó, da prima, da vizinha e do chefe, fez no dedo mindinho do pé esquerdo. Sempre adorou essas coisas brilhantes penduradas no corpo das pessoas e uma vez nas festas da Povoação chegou-se à Ruth Marlene, às escondidas do chefe, e prometeu-lhe por um berloque numa zona do seu corpo, mais íntima. Nada melhor que a ponta do dedo mindinho. Nada mais íntimo; dado que pode até andar todo nú, mas jamais tira os sapatos. É uma coisa que tem, desde pequenino, um hábito, que lhe pôs a mãe, desde os tempos em que ía para a praia do pópulo e a mãe lhe calçava as sandálias da bota Botilde.
O Fífia é parecido com essa figura do 123. Às vezes verde, outras roxo, o Fífia é um frete em pessoa; uma ambulante criatura; uma espécie de colar de pedras falsas; um guincho; um guardanapo; um vaso de flores pequenas; um pedaço de terra fora de validade, dura como um torrão… O Fífia não sabe de quase nada; não entende porque razão os homens vão de coletes vermelhos na procissão e as senhoras, algumas descalças, levam mantilhas a cobrir-lhes a cabeça. Mesmo assim, porque o chefe, o mandou; ontem pôs a sua melhor gravata, o fato de seda brilhante bege e foi acompanhar a procissão. Durante todo o caminho colheu folhas e flores da procissão e tirou à Imagem uma fotografia para mandar ao chefe pelo telemóvel; não fosse o seu amo pensar que ele não tinha ido…

In memoriam


"Cada vez mais com contornos de freguesia urbana e com uma população residente em grande parte constituída por pessoas do exterior, a Fajã de Baixo vem registando um decréscimo de participação dos seus habitantes em actividades comunitárias(...)".
Açoriano Oriental, 18 de Maio de 2005

Grupo Folclórico da Fajã de Baixo
Grupo de Jovens da Fajã de Baixo
Escoteiros
Centro de Dia e Centro de Convívio
Grupo Coral de Nossa Senhora dos Anjos
Boletim de Freguesia (extinto desde Outubro de 2005)

sábado, maio 20, 2006

Bom fim-de-semana. Boas festas.

Croniqueta XXV ou o Fífia não entrou

À porta, olhou, aflito, os convidados e as convidadas; investigando-lhe os ares, os penteados, os cabelos caídos ou amarrados das senhoras e os brincos. Não perdeu ainda esse hábito; quase ascintoso, revoltante até, de investigar as pessoas estranhas, quando as vê, dos pés à cabeça, como se fosse um inspector. Noutros tempos, era assim; um cochicho, um raspar de pés na calçada, uma gargalhada mais alta, uma palavra em surdina, qualquer coisa, fora de um “rasgo de palavras”, ditas coerentes; faziam-no enfiar de imediato o chapéu na nuca e desatar a chibatar verbalmente os populares.
Num café, numa esquina, num banco da avenida; tudo servia para fazer “trabalhar a mão”. Mas voltando à entrada da casa que lhe era familiar; parou, silencioso como um mosquito, quando perde as asas, depois da segunda pancada do chamado “mata-moscas”; os lábios subiram um pouco, descaindo nos cantos; quis aguentar o choro (de amargura), enquanto ouvia o que diziam os convidados; quis fechar os olhos e esquecer-se dos anos e anos em que cruzava o largo no seu carro e olhava aquele lugar sempre fechado; quis apagar da memória a história daquele lugar fechado há tantos anos; quis esquecer os anos em que, pela mão da avó, assistia, ali, à missa; quis, a todo o custo e esforçou-se, apagar da memória o facto de ter contribuído para que as pombas, as mãos, os sacos e os passos permanecessem fechados naquele lugar…mas não conseguiu. Então, desceu os degraus, benzeu-se e saiu.
Ainda não era tempo do Fífia voltar a entrar na igreja do Colégio, em Ponta Delgada.
Quem sabe, se depois da procissão de Domingo.

quinta-feira, maio 18, 2006

Autografia


Foto

sou um homem
um poeta
uma máquina de passar vidro colorido
um copo uma pedra
uma pedra configurada
um avião que sobe levando-te nos seus braços
que atravessam agora o último glaciar da terra

o meu nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: condenado
à morte!
os dias e as noites deste século têm gritado tanto no meu peito que
existe nele uma árvore miraculada
tenho um pé que já deu a volta ao mundo
e a família na rua
um é loiro
outro moreno
e nunca se encontrarão
conheço a tua voz como os meus dedos
( antes de conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa )
tenho um sol sobre a pleura
e toda a água do mar à minha espera
quando amo imito o movimento das marés
e os assassínios mais vulgares do ano
sou, por fora de mim, a minha gabardina
e eu o pico Everest
posso ser visto à noite na companhia de gente altamente suspeita
e nunca de dia a teus pés florindo a tua boca
porque tu és o dia porque tu és
a terra onde eu há milhares de anos vivo a parábola
do rei morto, do vento e da primavera
Quanto ao de toda a gente – tenho visto qualquer coisa
Viagens a Paris – já se arranjaram algumas.
Enlaces e divórcios de ocasião – não foram poucos.
Conversas com meteoros internacionais – também, já por cá
passaram.
Eu sou, no sentido mais enérgico da palavra
uma carruagem de propulsão por hálito
os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas por onde
passei uma só vez
tudo isso vive em mim para uma história
de sentido ainda oculto
magnifica irreal
como uma povoação abandonada aos lobos
lapidar e seca
como uma linha-férrea ultrajada pelo tempo
é por isso que eu trago um certo peso extinto
nas costas
a servir de combustível
e é por isso que eu acho que as paisagens ainda hão-de vir a ser
escrupulosamente electrocutadas vivas
para não termos de atirá-las semi-mortas à linha
E para dizer-te tudo
dir-te-ei que aos meus vinte e cinco anos de existência solar estou
em franca ascensão para ti O Magnifico
na cama no espaço duma pedra em Lisboa-Os-Sustos
e que o homem-expedição de que não há notícias nos jornais
nem
lágrimas à porta das famílias
sou eu meu bem sou eu
partido de manhã encontrado perdido entre
lagos de incêndio e o teu retrato grande!


Mário Cesariny, in Pena Capital, Assírio & Alvim

quarta-feira, maio 17, 2006

Croniqueta XXIV ou a Fífia é uma mulher de V curto


A Fífia desceu à avenida com o seu sapato de queda, amarelo e branco; comprado na Maia (Porto) num armazém muito chique do qual não lembra nome ou morada. Exclusivos, diz enquanto arreganha os dentes ao fotógrafo que lhe pede cheese para um retrato. Hoje, vem de cabelo armado e saia rodada como as da moda, que enchem as montras do Centro Comercial, mas estas como os sapatos, são exclusivas, porque o tecido comprado num armazém do Porto de que não lembra nome, rua ou marca e as linhas cosidas pela sua costureira predilecta e, como os sapatos e o tecido, exclusiva. A dita, mulherzinha, como se refere a Fífia num tom de voz carmim (porque esganiçado e frio) trabalhou para “montes”(está na moda dizer-se montes) de gente, mas como os sapatos, o tecido da saia e a costureira, a nossa Fífia não se lembra do nome dessa gente fashion, que a convida para as Festas, quando ela vai à Feira do Relógio a Lisboa e traz as roupas metidas nos sacos da Fnac. Agora, já marcou nova viagem; pediu licença à patroa e lá vai com o seu chapéu de palha de laço e os casacos à gafanhoto verdes e amarelos para parecer brasileira. Tem que comprar um vestido para levar na procissão; qualquer coisa azul-turquesa ou verde azeitona, sobretudo, exclusiva, comprada num armazém de lona em Lisboa, um armazém exclusivo, mas familiar, onde trabalha uma família inteira, cujo membro mais novo há-de ter uns 2 anos ou menos.
A Fífia é assim uma metáfora cultural. Uma malabarista, cujas estantes estão cheias de livros de como ser, fazer, ter ou dizer qualquer coisa; mais uns apêndices das revistas de bordados e Burdas. Passeando-se na cidade, à hora de almoço, cuja margem ultrapassa mais de meia hora, carrega sacos da Fnac e Buchholz; nas livrarias pergunta por nomes que aprende de cor e no cabeleireiro, quando vai, pedir para lhe esticarem o cabelo fala do seu cabeleireiro particular em Lisboa que fica num prédio do qual não lembra nome ou morada. Este ano já decidiu depois de regressar de Lisboa, de visitar a tal Feira do Relógio e os armazéns vai, de certeza, fazer caracóis no cabelo para levar na procissão. Fosse ela 10 anos mais nova e ia pedir à irmandade para ir de anjo. De asas abertas como uma borboleta colorida, epíteto que sempre adorou sobretudo quando o marido, de quem, a maior parte das vezes não lembra o nome, a chamava borboleta em inglês. Sentia-se, (sei lá), uma espécie de dama britânica, pintura de azulejo suspensa numa galeria de arte ou, quiçá, alfinete precioso pendurado num fato de rainha. A Fífia queria ser rainha, mas chegou tarde. Resta-lhe o consolo dos olhares extasiados quando passa no seu trote apressado; vestida de colorido (muitas cores) como se fosse uma caixa de aguarelas; borrada dos lábios, pintada dos dentes, num ar de mulher apressada. Porém, a pressa da Fífia está na vontade de ser vista; daí que passando-se pelas ruas da cidade seja comum vê-la em desfile e, nestes dias, depois de chegar de Lisboa, andará em treino fazendo todo o percurso da procissão. E se me esqueço do caminho?, pensa, enquanto mentalmente vai percorrendo todas as ruas da cidade. Treino. A Fífia vai treinar; depois há a posição do queixo e os cabelos, que não devem escorrer para a cara; ainda quer comprar uns sapatos confortáveis, azuis, de preferência com salto alto. Mulher chique como ela deve levar sapatos azuis e altos. Recomendação da mãe, ao telefone, do continente. A mãe mora algures, ao pé de um rio, mas a Fífia não se lembra do nome, da morada ou do número da casa da mãe.
Também para quê?
A Fífia é uma mulher de V curto, argolas de plástico a imitar osso e sorrisos vários.Porém, não se lembra do seu apelido, da casa onde nasceu ou do nome do seu primeiro urso de peluche. Mas isso comparado com o vestido do armazém de lona que fica numa rua perdida de que não lembra nome e morada não é nada. É uma ninharia. E com ninharias pode ela muito bem…
Sofre-se há mais de 35 anos.

terça-feira, maio 16, 2006

citação


Fui rocha, em tempo, e fui no mundo antigo,
Tronco ou ramo na incógnita floresta...
Onde, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo ...

Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
Ou, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paúl, glauco pascigo...

Hoje sou homem – e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, na imensidade...

Interrogo o infinito e às vezes choro...
Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente á liberdade.


Antero de Quental, Evolução

domingo, maio 14, 2006

Cântico de Humanidade

Hinos aos deuses, não.
Os homens é que merecem
Que se lhes cante a virtude.
Bichos que lavram o chão,
Actuam como parecem,
Sem um disfarce que os mude.

Apenas se os deuses querem
Ser homens, nós os cantemos.
E à soga do mesmo carro,
Com os aguilhões que nos ferem,
Nós também lhes demonstremos
Que são mortais e de barro.


Miguel Torga

sábado, maio 13, 2006



Recebido por email FRosado

Desta não me Livro



Espectáculo que comprova a capacidade de muitos textos lusófonos em dizer grandes coisas, nem sempre com as palavras mais sérias e formais. Um espectáculo simplista, algo despido, tão-só suportado no fio das palavras, mas de humor potente!
É um solo de Luís Fernandes, no papel de músico-“diseur”, com guião de Odete Ferreira e textos humorísticos dos maiores vultos da literatura de expressão portuguesa.


Hoje às 21h30 no Teatro Micaelense
Dia 17/05 às 16h30

Os carrascos

Vestem-se em pontas para não fazer barulho; ares de aço, papel no olhar...Usam bandeiras; falam calados; soam a vento; sentem-se em tudo!
São oblíquos, chatos, teimosos. São embirrentos, pocinhentos, moquencos.
Regem-se em cantos, mas surram nas paredes num desafino de acovardar; desmemoriados, falam em código, enchem-se de oléo; apertam travões.
Enamorados pela miséria alheia, riem de todos.
Porém, morrem sozinhos.

sexta-feira, maio 12, 2006

quarta-feira, maio 10, 2006

Inacreditável






Este lugar chama-se Canto. Fica na freguesia de Santo Amaro, na ilha do Pico. A casa foi notícia, no passado dia 5 de Maio, no Jornal do Pico. A construção está em período de licenciamento...
Isto também é Cultura! Permitir que coisas destas sejam construídas é contribuir para a descaracterização de todo um espaço e abrir precedentes. Em Santa Luzia (freguesia do concelho de São Roque do Pico) outras casas iguais foram construídas e licenciadas pela Câmara Municipal de São Roque. Um crime!

Croniqueta XXIII ou o Fífia é um cidadão suplente




De todas as histórias, aquela que mais gostava de ouvir contar era a do Polegarzinho.
A ideia de poder apanhar as migalhas daquele menino perdido no meio da floresta deixavam-no extasiado e a vibrar de alegria. Foi, por isso, que nunca procurou emprego nas férias de Verão que não fosse no café da tia, onde pudesse beber os restos de café das chávenas ou lamber os restos de gelado nas taças. Desde muito novo, herdava as roupas dos primos mais velhos; não tendo nunca que comprar vestuário para si. Gostava de ouvir os fins das músicas; numa repetição de refrão e consta que nos bailes de freguesia pedia sempre para dançar a moça mais cansada; resultado acabava dançando com as fitas rasgadas dos balcões, restos da festa. Na escola, escrevia com lápis pequeninos dos colegas, depois de serem afiados dez vezes e a mochila era herdada do primo mais velho 20 anos. Obviamente, que isto acabou tornando a vivência do Fífia numa situação de suplente; a si via-se, aos 18 anos, como um cidadão de enormes potencialidades quiçá político na nação ou, então, por obrigação de substituir alguém; rei de um condado distante. Leitor atento das fábulas de La Fontaine, lia-as de traz para a frente; chegando ao princípio com uma sensação de inacabado.
Assim é ele. Um cidadão suplente; não se escusa se for obrigado; mas foge de todas as obrigações à primeira; não escreve, resume o que outros escreveram; não fala, cita e não opina, medita as opiniões dos outros, os ecos do que disseram para depois reproduzir fielmente os últimos dois minutos do discurso do seu chefe.
Em criança, não foi um filho “suplente”, mas o facto é que à mesa comia o que os irmãos não queriam e os brinquedos todos com excepção de um papagaio que o pai lhe ofereceu, foram herdados dos primos mais velhos.
O Fífia nunca gostou, sequer uma vez, de levar vantagem; nunca se preocupou em ganhar; nunca quis ser o melhor ou, pelo menos, nunca teve o brio de dizer: “consegui”. Pelo contrário, de menino vem-lhe o gosto de esperar que os da sua equipa ganhem para festejar a vitória; nas fotografias dos anos nunca aparece em nenhuma mas, ao vê-las, aponta fulano e sicrano como sendo parecidos com ele. Têm traços, diz, enquanto alisa o pouco cabelo que traz, “os seus restos de passado”.
O Fífia é então o que espera no canto para a finta; o que não desafia, mas fia uma teia de cetim para fazer cair nela o primeiro mais desprevenido; visto ao longe parece um Santo; ouvido de perto dá ares de estar sempre em “substituição de”. Não é determinado nem ousado; é pacientemente preguiçoso. Mas, volta e meia lá se safa. Num revolver de saias de bailarino, corta daqui puxa dali e com as linhas deixadas no chão pelas costureiras mais distraídas; faz fantasias, puxa risadas amarelas. No fundo, é desajeitado; enche-se de luz, a que resta do palco, rodopia e entra em apoteoses várias, inseguro; trapalhão o Fífia é um avião atrasado que ao que tudo indica não tem trem de aterragem. Veremos se, um dia destes, não encontramos, apenas, um resto de Fífia e mais nada com flor de laranjeira ao peito como se fosse uma caixa de aguarelas vazia da qual não resta nem sequer um pingo de tinta para alegrar os seus dias…
Esperemos.

domingo, maio 07, 2006



Santo amaro, Pico, Açores
Foto AM


Canto (pico, açores)

sábado, maio 06, 2006

Reflexão de fim-de-semana

Os eunucos devoram-se a si mesmos
Não mudam de uniforme, são venais
E quando os mais são feitos em torresmos
Defendem os tiranos contra os pais.

Em tudo são verdugos mais ou menos
No jardim dos harens os principais
E quando os mais são feitos em torresmos
Não matam os tiranos pedem mais.

Suportam toda a dor na calmaria
Da olímpica visão dos samurais
Havia um dona a mais na satrapia
Mas foi lançado à cova dos chacais.

Em vénias malabares à luz do dia
Lambuzam da saliva os maiorais
E quando os mais são feitos em fatias
Não matam os tiranos pedem mais.


Os Eunucos, Zeca Afonso

(Porque por hoje não me apetece escrever/dizer mais nada...)

sexta-feira, maio 05, 2006

A propósito...



Serenamente Abril encontra-nos de novo.
O tempo move-se numa era pós-pós-quase-tudo:
Auckland tem sonhos de golfinhos cor-de-rosa,
Petropavlosk começa a fundir o Inverno,
Nos arredores de Lhasa alimentam-se ritualmente os abutres,
Fogo de artifício preenche o firmamento de Rawalpindi,
Em Köningsberg mais um dia se extingue,
Reykjavik desfruta da tranquilidade de um café
Lisboa comemora um velho golpe de estado.

Contudo uma maléfica tempestade fermenta.
Fantoches representam num sinistro teatro de sombras.
Cães raivosos são lançados com uma fanfarra.
O Atlântico Norte transforma-se num lago de escuridão,
Soprando uma Primavera negra sobre Belgrado.

Uma nação luta por um continente.
Mil aviões poluem um céu sagrado.
Um ancião brande o punho aos mísseis.
Notas explodem numa rapsódia criminosa.
Pontes destruídas, monumentos ao entretenimento global,
Petróleo e ultraje fluem com o Danúbio.
Colunas de fumo são barras de aço no horizonte.
Sirenes transformadas em canções de embalar.
Flores de cerejeira varrem as crateras das bombas.

Resistindo com inquebrável tenacidade,
A Europa está a ser violada pelo rufião americano.
Arrogância, violência, o sustento de vândalos.
A civilização sobrevive em abrigos subterrâneos,
O espírito do príncipe Lazar exige reencarnação,
Invasores bárbaros são efémeros, a Europa é eterna.


Primavera Negra, M.Daedalus

Citação (importante)

"(...)VESTIBULANTE: adj. 2 gén. Que "faz" vestíbulo, que deambula por vestíbulos. S.2 gén. Aquele que desempenha uma função ainda mal defenida que se poderia definir como exercício, em qualquer ramo de actividade, do "espírito de vestíbulo", isto é, do espírito de lugar comum. Acima do recepcionista, abaixo do public relations, o vestibulante cultiva a mediania nas ideias e nos gostos. Sabendo de tudo um pouco, sem saber, realmente, de nada, promotor de situações comuns para homens particulares, de situações particulares para homens comuns, o vestibulante é subproduto de razoável consumo na sociedade do dito.(...)"

excerto de "Os Vestibulantes" de Alexandre O´Neill inserido na obra Uma Coisa em Forma de Assim

quarta-feira, maio 03, 2006

Croniqueta XXII ou o Fífia calça meias plim plim: até aos 20 é de príncipe; daí para cima é de Rei!!!




O Fífia sai à rua na sua meiazinha “plim-plim”; uma marca nova de meias, cujo lema é: “meias plim-plim e o seu pé fica assim” e depois aparece um pé a dormir numa alcofa de príncipe. Calçado, o Fífia, que já ultrapassou os 40 anos, julga que é Rei, dono de castelos e campos, herói e senhor de montes verdes e florestas de encantar com princesas, aias e aios. Depois de “loiro, gordinho e rosado” como no poema de Pessoa (com “p grande”, como se diz na gíria); o nosso Fífia diz-se hoje Rei; anunciador de um novo mundo, coberto por raízes de vida. Feudal. O nosso Fífia é feudal. De bico no ar; olhos abertos como um garajau; lembra um cabide de salão de baile: quando há festa está enfeitado por belos casacos de pele e tiras brilhantes de pano, que as senhoras enrolam nos pescoços delgados, deixando cobrir sinais pouco abonatórios das suas reputações; quando não há festa está o cabide nú da base aos braços. Despido como uma árvore em pleno período outonal…Mas adiante! O Fífia, cuja eira e beira começa e acaba numa rua normal da cidade dessas com passeios desenhados e lixo pendurado na porta, sem mal nenhum entenda-se, gosta de se armar; em cima das meias plim-plim calça sapatos de fivela e veste fatos de chiffon, porque brilhantes lhe dão um ar de poeta renascentista em espectáculos de praça. Quando fala e vê os holofotes das luzes do “show”, como diz; parece uma esponja de cozinha, das que são verdes por cima, aonde no meio do brilho do sabão, se vê bolhas de espuma. Nele são, apesar do grotesco da imagem, salivas que brotam do contentamento de ser aplaudido pelas multidões que, julgando-o um cómico, lhe dão muitas palmas e assobios de satisfação. O Fífia é um “entertainer”; uma batuta dobrada em cujo plástico “mora” um desafino constante. Mau orquestrador não se lhe segue a orquestra; marchando cada tocador para o lado que mais apetece naquele dia ou naquela hora; sem explicação plausível…Mas não faz mal, quando agarra nos seus pedaços de papel, destila poesia a rodos, como se as palavras servissem tão só e apenas para as brincadeiras de Carnaval que faz, porque para ele, o Entrudo é quando um homem quiser; daí que, mesmo sem patrocínio, o nosso Fífia meta água seja em que altura for ou seja em que lugar for; encharcando-se até aos ossos. Porém, normalmente safa-se, porque à conta dos olhos bonitos que faz (mas não tem) logo acorrem dezenas de aias para enxugar os aguaceiros. O Fífia é um sortudo; uma figura de Roda, ganha numa quermesse de festas; onde entre os pratos, os copos e os porta-chaves de miniatura está, em qualquer número, a sorte de sair um Fífia; mediano de orelhas em pé, com pequenas e delicadas faltas de cabelo; espevitando-se num andar de jibóia disfarçada de colar de diamantes.
O nosso Fífia gaba-se do que não tem; usa de um pronome pessoal narcísico em cujas primeiras palavras se lê o resto do discurso gasto e acabado como um gelado da Fábrica de Gelados Montanha a derreter-se no cone. Falhado nas bases, mas de meia de alcofa, que é de príncipe até aos 20 e Rei daí para cima, ainda não percebi porque ele, logo ele, não foi convidado para participar no Circo das Celebridades.

Lamento

Só se vive uma vez tem-se pena
mas morrer muitas vezes é obra.
Já que a vida é o pano de cena
o teatro da morte que sobra.

E a mulher traz no ventre um filho
e os olhos postos no mar largo.
Cada vez que morre é como um lírio,
em campa rasa e em chão sagrado. III
Só se vive uma vez tem-se pena,
mas morrer muitas vezes é triste.
Já que a morte é o pano de cena,
o teatro onde a vida resiste.

E a mulher tem no ventre um fardo,
e o olhar triste pelo mar.
Cada vez que morre é como um cardo,
em campa rasa e em chão lunar.


Letra: Fernando Reis Júnior
Música: João Miguel