quarta-feira, maio 17, 2006

Croniqueta XXIV ou a Fífia é uma mulher de V curto


A Fífia desceu à avenida com o seu sapato de queda, amarelo e branco; comprado na Maia (Porto) num armazém muito chique do qual não lembra nome ou morada. Exclusivos, diz enquanto arreganha os dentes ao fotógrafo que lhe pede cheese para um retrato. Hoje, vem de cabelo armado e saia rodada como as da moda, que enchem as montras do Centro Comercial, mas estas como os sapatos, são exclusivas, porque o tecido comprado num armazém do Porto de que não lembra nome, rua ou marca e as linhas cosidas pela sua costureira predilecta e, como os sapatos e o tecido, exclusiva. A dita, mulherzinha, como se refere a Fífia num tom de voz carmim (porque esganiçado e frio) trabalhou para “montes”(está na moda dizer-se montes) de gente, mas como os sapatos, o tecido da saia e a costureira, a nossa Fífia não se lembra do nome dessa gente fashion, que a convida para as Festas, quando ela vai à Feira do Relógio a Lisboa e traz as roupas metidas nos sacos da Fnac. Agora, já marcou nova viagem; pediu licença à patroa e lá vai com o seu chapéu de palha de laço e os casacos à gafanhoto verdes e amarelos para parecer brasileira. Tem que comprar um vestido para levar na procissão; qualquer coisa azul-turquesa ou verde azeitona, sobretudo, exclusiva, comprada num armazém de lona em Lisboa, um armazém exclusivo, mas familiar, onde trabalha uma família inteira, cujo membro mais novo há-de ter uns 2 anos ou menos.
A Fífia é assim uma metáfora cultural. Uma malabarista, cujas estantes estão cheias de livros de como ser, fazer, ter ou dizer qualquer coisa; mais uns apêndices das revistas de bordados e Burdas. Passeando-se na cidade, à hora de almoço, cuja margem ultrapassa mais de meia hora, carrega sacos da Fnac e Buchholz; nas livrarias pergunta por nomes que aprende de cor e no cabeleireiro, quando vai, pedir para lhe esticarem o cabelo fala do seu cabeleireiro particular em Lisboa que fica num prédio do qual não lembra nome ou morada. Este ano já decidiu depois de regressar de Lisboa, de visitar a tal Feira do Relógio e os armazéns vai, de certeza, fazer caracóis no cabelo para levar na procissão. Fosse ela 10 anos mais nova e ia pedir à irmandade para ir de anjo. De asas abertas como uma borboleta colorida, epíteto que sempre adorou sobretudo quando o marido, de quem, a maior parte das vezes não lembra o nome, a chamava borboleta em inglês. Sentia-se, (sei lá), uma espécie de dama britânica, pintura de azulejo suspensa numa galeria de arte ou, quiçá, alfinete precioso pendurado num fato de rainha. A Fífia queria ser rainha, mas chegou tarde. Resta-lhe o consolo dos olhares extasiados quando passa no seu trote apressado; vestida de colorido (muitas cores) como se fosse uma caixa de aguarelas; borrada dos lábios, pintada dos dentes, num ar de mulher apressada. Porém, a pressa da Fífia está na vontade de ser vista; daí que passando-se pelas ruas da cidade seja comum vê-la em desfile e, nestes dias, depois de chegar de Lisboa, andará em treino fazendo todo o percurso da procissão. E se me esqueço do caminho?, pensa, enquanto mentalmente vai percorrendo todas as ruas da cidade. Treino. A Fífia vai treinar; depois há a posição do queixo e os cabelos, que não devem escorrer para a cara; ainda quer comprar uns sapatos confortáveis, azuis, de preferência com salto alto. Mulher chique como ela deve levar sapatos azuis e altos. Recomendação da mãe, ao telefone, do continente. A mãe mora algures, ao pé de um rio, mas a Fífia não se lembra do nome, da morada ou do número da casa da mãe.
Também para quê?
A Fífia é uma mulher de V curto, argolas de plástico a imitar osso e sorrisos vários.Porém, não se lembra do seu apelido, da casa onde nasceu ou do nome do seu primeiro urso de peluche. Mas isso comparado com o vestido do armazém de lona que fica numa rua perdida de que não lembra nome e morada não é nada. É uma ninharia. E com ninharias pode ela muito bem…
Sofre-se há mais de 35 anos.

1 comentário:

Anónimo disse...

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